… as actividades da agricultura, da produção animal, da floresta, da caça, da pesca, bem como as actividades dos serviços que estão directamente relacionados com a agricultura familiar são determinantes em grande parte do território nacional. Estas actividades assumem, assim, relevância na produção, no emprego, na biodiversidade e na preservação do ambiente através, nomeadamente, do incentivo à produção e ao consumo locais, que por sua vez minimizam as perdas e o desperdício alimentares, garantindo também uma presença em muitas áreas do interior, o que torna imperiosa a promoção de políticas públicas que reconheçam e potenciem essa contribuição da agricultura familiar.
Artigo 2.º
Objectivos
O Estatuto visa prosseguir os seguintes objectivos:
- a) Reconhecer e distinguir a especificidade da Agricultura Familiar nas suas diversas dimensões: económica, territorial, social e ambiental;
- b) Promover políticas públicas adequadas para este extrato socioprofissional;
- c) Promover e valorizar a produção local e melhorar os respectivos circuitos de comercialização;
- d) Promover uma agricultura sustentável, incentivando a melhoria dos sistemas e métodos de produção;
- e) Contribuir para contrariar a desertificação dos territórios do interior;
- f) Conferir à Agricultura Familiar um valor estratégico, a ter em conta, designadamente nas prioridades das políticas agrícolas nacional e europeia;
- g) Promover maior equidade na concessão de incentivos e condições de produção às explorações agrícolas familiares.
(Excerto do Decreto-Lei n.º 64/2018 de 7 de agosto)
A CNA congratulou-se com o acolhimento do senhor Primeiro-Ministro à proposta de Estatuto da Agricultura Familiar Portuguesa, aprovada no 8º Congresso da CNA, em audiência concedida em Fevereiro de 2017.
No entanto, decorridos quase três anos após a consagração do Estatuto da Agricultura Familiar pelo Decreto-Lei n.º 64/2018, e dois anos depois da publicação da respectiva regulamentação na Portaria n.º 73/2019, a CNA considera que é mais necessário do que nunca dar expressão concreta e significativa aos direitos consagrados nesse Estatuto. Instamos por isso o Sr. Primeiro-Ministro e o Governo a tomar todas as medidas necessárias para ir ao encontro da concretização plena deste importante e decisivo instrumento para o desenvolvimento da Agricultura Familiar, da produção agrícola, da qualidade dos alimentos, e da Soberania Alimentar do nosso País.
O amplo e transversal significado do Estatuto da Agricultura Familiar é atestado pela abrangência de matérias que cabem na área de intervenção política de dez Ministérios (Agricultura, Ambiente e Acção Climática, Coesão Territorial, Educação, Economia e Transição Digital, Finanças, Justiça, Modernização do Estado e da Administração Pública, Planeamento, Saúde). Contudo, o empenho do Governo na concretização do Estatuto está longe de corresponder à sua importância, saldando-se num parco conjunto de medidas isoladas, praticamente apenas ao nível o Ministério da Agricultura, e de muito curto alcance para os agricultores familiares. Se a isto somarmos uma gestão burocrática do Estatuto que se tem revelado ineficiente e restritiva, fica explicado porque é que a aplicação do Estatuto está tão longe do seu alcance potencial.
Caminhando para três anos sobre a publicação daquele Decreto-Lei, dos cem mil potenciais beneficiários anunciados pelo então Ministro da Agricultura, em conferência de imprensa no dia da aprovação do DL pelo Conselho de Ministro, apenas foram atribuídos cerca de 270 títulos.
Hoje, evidenciada pela situação de pandemia, é generalizada a opinião das mais diversas entidades e personalidades, da necessidade de urgente correcção das condições de acesso (facto publica e repetidamente reconhecido pelo então e pela actual Ministra da Agricultura) e da urgente implementação das medidas consagradas.
Mas não basta reconhecer que é necessário melhorar o Estatuto. É urgente concretizar as indispensáveis correcções, promovendo o debate no espaço criado para “Acompanhar a aplicação do presente diploma, incluindo a respectiva regulamentação”, a Comissão Nacional da Agricultura Familiar. É necessário retomar o funcionamento deste órgão pois, das cinco reuniões semestrais que deveria ter feito até agora, apenas foram realizadas duas, ainda no exercício do anterior Governo.
A CNA considera que, tendo em conta a transversalidade do Estatuto e o necessário envolvimento de diversos Ministérios, é indispensável que o Sr. Primeiro-Ministro esteja disponível para nos receber em audiência, como primeiro passo para concretizar o conjunto de propostas que a CNA tem vindo a desenvolver para dar ao Estatuto da Agricultura Familiar uma implementação substantiva em medidas que valorizem a Agricultura Familiar, os rendimentos e a dignidade das agricultoras e dos agricultores, caminhando no sentido dos Objectivos de Desenvolvimento Sustentável a nível global, reconhecimento que levou à declaração da Década da ONU para a Agricultura Familiar 2019 – 2028, de que Portugal foi um dos países promotores.
Num momento em que o Plano de Recuperação e Resiliência, instrumento que se pretende de recuperação económica e de melhoria do desempenho ambiental e tecnológico, deixa inexplicavelmente de fora medidas dirigidas ao investimento na produção agrícola, ganha ainda maior urgência avançar para a concretização plena e abrangente do Estatuto da Agricultura Familiar. Ele é também instrumento que se integra nas acções necessárias para cumprir os objectivos das Estratégias do Prado ao Prato ou da Biodiversidade, e que visam valorizar a multifuncionalidade da agricultura, a biodiversidade, a paisagem e os valores culturais dos territórios.
É neste contexto que propomos, desde já, contribuir para a criação de um Plano Integrado de Promoção e Apoio ao Desenvolvimento da Agricultura Familiar, que contribua para a instalação de pequenas e médias explorações familiares, para o rejuvenescimento do tecido agrícola e para a melhoria dos rendimentos dos agricultores e contemple, também, medidas de valorização dos sistemas policulturais e da instalação de cooperativas de produtores.
Consideramos ser fundamental, na implementação do Estatuto da Agricultura Familiar, que sejam concretizadas as seguintes propostas, de importância estrutural:
– Revisão dos critérios de obtenção e manutenção do Estatuto, prevendo a possibilidade de este se manter por pelo menos três anos, considerando apenas os pagamentos directos no limiar de ajudas, e considerando apenas os rendimentos provenientes da actividade agrícola, reconhecendo também a prestação graciosa de mão-de-obra por parte de outros elementos para além do agregado familiar;
– Valorização das mulheres agricultoras, dando-lhes prioridade no apoio à sua instalação, formação e acesso a apoios sociais;
– Estabelecimento de um regime de arrendamento e compra de terras, nomeadamente as do Estado, que dê preferência à Agricultura Familiar, exclua do arrendamento rural a utilização não agrícola e respeitando o prazo mínimo de sete anos no arrendamento de terras;
– Criação de um regime específico de acesso à água de rega, bonificando seu preço unitário e simplificando o acesso às explorações familiares;
– Ponderação maioritária da origem, modo de produção e tipo de agricultura, no fornecimento de produtos ao abrigo da contratação pública para fornecimento de bens alimentares a estruturas públicas;
– Flexibilização do reconhecimento e financiamento à constituição de agrupamentos de pequenos produtores multiprodutos, valorizando o objetivo de constituir e desenvolver circuitos curtos de comercialização;
– Instituição de um regime específico de segurança social que valorize as reformas dos agricultores e demais membros do agregado familiar, bonificando a taxa de contribuição dos cônjuges, sem perda de direitos;
– Estabelecimento de bonificações nos spreads e juros no crédito específico à Agricultura Familiar, e que este crédito inclua o apoio ao investimento.
Divulgamos ainda outras propostas que a CNA quer apresentar ao Sr. Primeiro-Ministro para concretizar o Estatuto da Agricultura Familiar:
– Aumento do benefício adicional no gasóleo colorido e marcado;
– Simplificação do licenciamento das explorações familiares em termos de higiene e segurança no trabalho;
– Eliminação das franquias e reforço das bonificações nos seguros agrícolas;
– Manutenção e alargamento da gratuidade de actos administrativos relacionados com o registo de propriedade de prédios rústicos;
– Isenção da Agricultura Familiar de taxas e emolumentos respeitantes à actividade agrícola;
– Majoração dos prémios das medidas de apoio à agricultura em zonas com desvantagens naturais;
– Estabelecimento de majorações nos incentivos aos investimentos em eficiência energética e na produção de energia de fontes renováveis;
– Criação de um plano específico de formação para a Agricultura Familiar;
– Valorização do acompanhamento à gestão das explorações e apoio às associações que o façam.
A Agricultura Familiar precisa hoje, mais do que nunca, de ver amplamente reconhecido o seu valor económico, social, cultural e ambiental. O desenvolvimento sustentável do País necessita hoje, mais do que nunca, de garantir a viabilidade e desenvolvimento da Agricultura Familiar, afirmando-a como uma agricultura dinâmica e sustentável, motor de coesão e desenvolvimento económico. E o País precisa hoje, mais do que nunca, de se apoiar na Agricultura Familiar para construir um futuro com mais e melhor produção, mais soberania, mais sustentabilidade e maior resiliência. É pela transversalidade das questões enumeradas, e pela sua importância política, económica e social, que a CNA torna público este seu apelo ao Sr. Primeiro-Ministro, dando sequência à luta das agricultoras e agricultores, e de todos quantos desejam trabalhar a terra e viver com dignidade.
Coimbra, 9 de Março de 2021
A Direcção da CNA