O impacto das alterações climáticas, que põe em risco a vida na Terra, é o maior desafio do século XXI. De um lado, as feridas abertas na ecologia da paisagem, a saber, as secas severas e a escassez de recursos hídricos, a mineralização dos solos, a biodiversidade ameaçada, a fragmentação dos ecossistemas, a degradação dos serviços de ecossistema, a má qualidade do ar, as ruturas nas cadeias alimentares, as migrações da fauna e da flora. Do outro lado, o capitalismo global e extraterritorial, o mercantilismo extrativista, a economia intensiva e produtivista, o primado da rentabilidade financeira, a oligopolização da economia internacional pelos gigantes tecnológicos.
As alterações climáticas, o risco iminente do desastre, as grandes feridas abertas, tudo isto muda as nossas perceções e geografia sentimental e, portanto, também, as nossas inclinações artísticas e culturais. Do mesmo modo, a ciência e tecnologia vão fazer incursões surpreendentes para tentar evitar alguns desses desastres mais ou menos iminentes. É uma mudança paradigmática que está em curso.
A ecologia da paisagem como grelha de leitura e revelação do território
Com as alterações climáticas há um mundo que está em risco de desaparecer. A ecologia da paisagem, que é, também, uma determinada forma de ecologia política, prepara-nos para uma série de mediações e intermediações que podem, talvez, evitar uma nova tragédia dos comuns, não obstante a destruição da paisagem acarretar uma perda significativa do seu potencial expressivo, da sua singularidade e carácter original. Além disso, a nossa observação paisagística fica, claramente, mais pobre.
Seja como for, o nosso conceito transdisciplinar e sistémico de ecologia da paisagem, cujos vetores principais enunciamos a seguir, alarga bastante a grelha de leitura dos problemas em análise e, sobretudo, amplia a dotação de recursos que nos são revelados por todas essas dimensões analíticas. Todas estas funcionalidades e potencial expressivo da ecologia da paisagem podem ser colocados ao serviço da economia criativa. Eis essas principais funcionalidades e expressões:
– A paisagem como natureza geofísica e beleza natural,
– A paisagem como ecologia funcional e gestão de recursos e ativos,
– A paisagem como território de ação humana e vida de relação,
– A paisagem como economia e sistema de produção,
– A paisagem como inspiração artística e obra de arte,
– A paisagem como cenário, celebração e espírito do lugar,
– A paisagem como vista panorâmica e produto de consumo turístico,
– A paisagem como complexo de perceções, sensações, emoções e experiência metafísica,
– A paisagem como projeto cultural e promessa de futuro de um território-desejado,
– A paisagem como grelha de leitura do nosso tempo e exemplo da teoria dos sistemas.
A economia criativa e a coesão territorial das ABD
Esta revelação epistémica da ecologia da paisagem como ilustração da teoria dos sistemas complexos é muito prometedora como projeto de futuro para um determinado território que tem um programa de ordenamento e desenvolvimento para cumprir, sobretudo, se esse programa se reportar a uma área ou região de baixa densidade (ABD), em termos de atividade económica, população residente e visitação turística. Na cadeia de valor de uma ABD a ecologia da paisagem deverá articular-se e interagir com os principais vetores da economia criativa, desde logo os vários dispositivos da economia digital, depois as inovações da ciência e tecnologia e, por fim, a arte e a cultura nas suas diversas manifestações.
No que diz respeito à economia digital, a grande questão reside em saber qual o ponto de equilíbrio entre digitalizar o território e monitorizá-lo à distância numa lógica maioritariamente ex situ e territorializar o digital com a criação de infraestruturas e equipamentos que atraiam os jovens empresários e os talentos criativos para as nossas redes de vilas e cidades de acordo com uma abordagem maioritariamente in situ que faça da ocupação equilibrada e harmoniosa do território uma espécie de imperativo categórico.
Na verdade, não só o geoprocessamento e o uso de dados espacializados é cada vez mais comum, como uma das questões mais interessantes da transição digital é a de saber como responde a inteligência coletiva dos principais incumbentes do território, e como essa reação se repercute sobre o ordenamento e a ocupação do território, à medida que o tempo-máquina, a inteligência artificial, a realidade virtual e as tecnologias de interface cerebral usadas no ambiente imersivo do meta verso forem os dispositivos técnicos e tecnológicos mais utilizados. Dito de outro modo, a georreferenciação e o geoprocessamento são a base do planeamento analítico territorial e do sistema operativo que organiza e executa o plano regional de ordenamento do território (PROT) e o plano diretor municipal (PDM).
Nesta cadeia de valor da ecologia da paisagem, as inovações de ciência e tecnologia têm um papel essencial, desde logo os serviços prestados pelos centros de ecologia funcional, os laboratórios colaborativos da paisagem, os centros operativos e os institutos de investigação que restabelecem, por exemplo, as ligações entre infraestruturas verdes e corredores ecológicos, que restauram os ecossistemas, os habitats e os serviços de ecossistema, que cuidam das espécies ameaçadas e dos endemismos locais e previnem as espécies invasoras, que criam as condições mínimas para as migrações da fauna e da flora, elas também fortemente atingidas pelas alterações climáticas.
Na sequência da cadeia de valor e na mesma linha de pensamento, vamos encontrar uma outra mediação, a saber, a mediação criativa e cultural por via da produção de numerosos conteúdos inovadores expostos em múltiplos eventos culturais e criativos espalhados por todo o país. Estamos a falar de processos diversos de turistificação, gamificação e ludificação, de desportos radicais, de circulação de equipas multinacionais em projetos de investigação e grupos de performers em residências artísticas, de nómadas digitais em espaços de trabalho colaborativo, de muitas oficinas de artes e ofícios, de centros de ciência viva e interpretativos, de várias bienais de arte e património, no limite, mesmo, de uma certa estetização da paisagem que seria, assim, reinterpretada e representada à luz de todas estas contribuições.
No final, a pergunta que se impõe é a seguinte: como irão articular-se os diversos incumbentes do futuro face à diversidade de modos operativos que se apresentam e agregam à volta dos mercados, instituições, redes, comunidades e associações, plataformas colaborativas, eventos, e qual o papel do estado-administração na gestão de toda esta inteligência coletiva territorial. Com efeito, se pensarmos na coesão territorial das ABD, só teremos uma ocupação equilibrada e harmoniosa do território se tivermos intérpretes genuínos da inteligência coletiva territorial e atores-rede capacitados para administrarem as várias plataformas colaborativas e os seus dispositivos tecnológicos e digitais mais diferenciados. Recordo aqui alguns desses incumbentes principais:
– As uniões de freguesias e as redes comunitárias de serviços ambulatórios junto dos grupos de população mais vulneráveis; a tecnologia digital pode favorecer esta mobilidade e proximidade,
– As zonas de intervenção florestal (ZIF), as áreas integradas de gestão da paisagem (AIGP), os condomínios de aldeia (CA), precisam de estar no terreno para realizar com eficácia a gestão do risco de incêndio, o ordenamento e a gestão florestal,
– As áreas de paisagem protegida, os parques naturais, os geoparques, as zonas termais, precisam de estar no terreno através de clubes de produtores e associações de defesa do património para realizar o ordenamento e a gestão efetiva do património natural e a sua visitação turística ordenada,
– Os centros de investigação, os laboratórios colaborativos e as associações de desenvolvimento local, precisam de estar no terreno em plataformas colaborativas com o apoio de jovens estagiários de investigação e estudantes de pós-graduação em projetos de investigação e desenvolvimento e com pontos de apoio em projetos empresariais,
– As zonas industriais, os parques empresariais e os núcleos empresariais, precisam de estar no terreno para realizar a gestão coletiva de bens e serviços comuns, em especial, na gestão de resíduos e tudo o que diz respeito aos projetos de economia circular,
– As associações empresariais, as escolas profissionais, os institutos politécnicos e as universidades, precisam de constituir plataformas colaborativas de cooperação e extensão empresarial de apoio ao reagrupamento e recapitalização de PME e explorações agrícolas,
– Os consórcios empresariais formados no âmbito das agendas mobilizadoras do PRR, compostos por várias entidades públicas e privadas, são um posto de observação privilegiado para acompanhar a realização efetiva dos programas contidos no PRR, sobretudo os de índole industrial,
– Os agrupamentos europeus de cooperação territorial (AECT) e as euro-cidades, precisam de estar no terreno, formar plataformas colaborativas e realizar efetivamente a cooperação transfronteiriça que está inscrita nos seus programas,
– As redes de vilas e cidades, as comunidades intermunicipais (CIM) e as regiões-cidade, precisam de estar no terreno e praticar formulas mais ousadas de federalismo intermunicipal, utilizando, para o efeito, as plataformas digitais das cidades e regiões inteligentes e criativas.
Nota Final
Como se observa, sem todos estes incumbentes principais não teremos, muito provavelmente, inteligência coletiva territorial capaz de realizar efetivamente as infraestruturas, os equipamentos, as plataformas, as comunidades inteligentes, os atores-rede e as equipas que são imprescindíveis à transição digital e, do mesmo modo, não teremos geografia sentimental, inteligência emocional e criatividade bastantes para animar todo este sistema operativo. Ou seja, se não construirmos com zelo e competência as nossas redes e plataformas made in, à medida das nossas necessidades, recursos e objetivos, vamos ficar nas mãos do negócio digital e criativo de ocasião operado pelos intermediários e beneficiários dos grandes gigantes tecnológicos que nos tratam como meros utilizadores e consumidores finais dos seus produtos e serviços e sempre à mercê da última moda. Fica o aviso, o nosso problema maior não é de instrumentos ou tecnologia, é de compromisso e solidariedade com a economia do bem comum.
A terminar, presto uma singela homenagem a um monumento à ecologia da paisagem, o ecossistema do Barroso, uma área de baixa densidade, austera e severa, mas com atores e intérpretes dignos dos maiores elogios pela resiliência e renovação que têm emprestado há muitas décadas a um território tão especial, por todas as razões, como é a sub-região do Barroso. Falo do ecossistema do Barroso, considerado património agrícola mundial reconhecido pela FAO, e do ator-rede que se constituiu em redor das Câmaras Municipais de Boticas e Montalegre, do movimento cooperativo e da cooperativa agro rural do Barroso, a COPALIB, do ecomuseu do Barroso e do Centro de Valorização do Barroso, da associação ADRAT, entre outros atores. Refiro-me a uma paisagem humanizada por processos ancestrais de gestão agro-silvo-pastoris, uma grande variedade de formações vegetais, raças autóctones e produtos endógenos denominados e com indicação geográfica, enfim, a uma relação umbilical única entre o ser humano e o meio ambiente. Mais uma vez, a minha homenagem.
Professor Catedrático na Universidade do Algarve