A celebrar 20 anos da classificação do Alto Douro Vinhateiro como paisagem cultural evolutiva e viva pela Unesco, o coordenador da candidatura, Fernando Bianchi de Aguiar, conta como foi essa aventura
O coordenador da task-force duriense recorda que se evitou, assim, centralizar em demasia a candidatura na cultura do vinho e na região demarcada e regulada mais antiga do mundo, por temor ao sentido de voto dos países árabes que fazem parte da Unesco.
No Museu do Douro, em Peso da Régua, Bianchi de Aguiar, engenheiro rural de costela local pelo lado materno, apela a uma mais justa repartição da riqueza da região para estancar a perda de população e pede aos portugueses que voltem a celebrar os acontecimentos festivos com Vinho do Porto, ao invés do que fez Rui Rio – “um homem do Porto” – quando venceu as diretas do PSD.
Lembra-se como surgiu a ideia de candidatar o Douro a Património Mundial da Unesco?
A primeira pessoa a tomar uma iniciativa formal foi Miguel Cadilhe, enquanto presidente da Fundação Rei Dom Afonso Henriques (instituição transfronteiriça de promoção do Vale do Douro). Uns anos antes, quando fui presidente do Instituto do Vinho do Porto (IVP), tinha lançado esse desafio à Associação Comercial do Porto (ACP) e à Casa do Douro e fizemos uma primeira diligência. Virgílio Folhadela, presidente da ACP, acarinhou imenso a ideia, simplesmente era preciso dinheiro para fazer a candidatura. O IVP poderia institucionalmente ter avançado, mas não era fácil, porque o sector estava a passar por um momento de crise. Em 1991, a Casa do Douro passou por um enorme descalabro financeiro e achei que a minha obrigação era pacificar o sector. Cheguei a ir a Paris na altura em que José Augusto Seabra era embaixador de Portugal na Unesco. Entusiasmou-se com a ideia, mas era preciso meios. E também desisti porque o Porto estava a preparar a sua candidatura a Património Mundial. Falei com Fernando Gomes, presidente da Câmara do Porto, a ver se fazia sentido uma candidatura única. O Douro denominação de origem, o rio e o Porto estão sempre associados, até ao entreposto comercial de Vila Nova de Gaia.
Não aconteceu porquê?
A ligação era lógica, mas estávamos muito atrasados e o Porto numa fase avançada. Fizemos uma pausa, até que Virgílio Folhadela, como membro da Fundação Rei Dom Afonso Henriques, retomou a questão e Miguel Cadilhe agarrou-a com unhas e dentes. Foi a pessoa que mais empenho teve na candidatura e veio convidar-me à Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD). Constituí uma equipa com base na UTAD, na Universidade de Aveiro e do Porto.
Uma task-force?
Sem férias, em três anos fizemos uma candidatura bem-sucedida.
Que documentos e argumentos apresentaram?
Tivémos de demonstrar o caráter excecional e universal do bem. Fez-se um estudo comparativo com bens semelhantes a demonstrar a sua grande autenticidade. Neste caso, quisémos classificar como paisagem cultural. Era um conceito recente, de 1981, e a primeira candidatura até foi portuguesa, Sintra.
Foi logo bem aceite?
Primeiro foi inscrito numa lista indicativa, um documento a demonstrar à Comissão da Unesco que estávamos perante um bem que tinha condições para ser um candidato de sucesso. Em meia dúzia de meses conseguimos. Houve o empenho do Governo português porque a candidatura é totalmente privada, mas foi preciso algum trabalho pago de pessoas que hoje trabalham no Museu do Douro para se fazer o levantamento do património do Vale do Douro.
E quanto tempo demorou até a candidatura do Alto Douro Vinhateiro ser apreciada pela UNESCO?
Havia outros bens a aguardar, entre eles o Pico. Num ano, a nossa foi aceite com uma condição: que houvesse um plano de gestão, já que foi entregue exatamente no ano em que a Unesco passou a exigir plano de gestão. Nessa altura, Braga da Cruz era presidente da Comissão de Coordenação da Região Norte (CCDR-N) e convidou-me para fazer um plano intermunicipal do Douro.
Qual foi a reação dos municípios locais?
Foi a parte mais difícil, mas ouve muita sensibilidade por parte de quem liderou o processo, Braga da Cruz e Miguel Cadilhe. Apresentaram-me como coordenador no Palácio de Mateus, cerimónia em que se convidaram todos os autarcas…
Os 13 municípios que integram a região classificada?
Na altura não se sabia quantos seriam. A candidatura era a Região Demarcada do Douro e o que sugerimos era a classificação da mancha da bacia visual do rio Douro até à zona do Vale de Meão. Nunca tivemos qualquer reação negativa das autarquias. A CCDRN continuou a trabalhar com os autarcas, que assinaram um compromisso relativamente à salvaguarda do património, em que esteve presente Elisa Ferreira, que então era ministra do Ambiente.
O envolvimento de proximidade foi decisivo?
Fizémos questão de ter muita interação local. O PIOT (Plano Integrado de Ordenamento do Território) foi a forma encontrada para vincular as autarquias no seu conjunto. Ideia de Braga da Cruz. Era fundamental ter o consenso dos autarcas, que só através do PDM (Plano Diretor Municipal) podiam vincular os privados. Entretanto, fui secretário de Estado do Desenvolvimento Rural e com o ministro do Ambiente fizémos um despacho em que antecipávamos os compromissos dos privados.
Como?
O Ministério da Agricultura estava a financiar as novas vinhas do Douro através do programa Vitis . Constituiu-se todas as variáveis para mantar a paisagem, obrigatórias nas candidaturas das novas vinhas. O Douro é dos privados, não é um museu em que a Administração Pública tem a gestão. O vínculo dos privados revelou-se sábio.
O que era preciso garantir? A salvaguarda dos socalcos?
Sim. Preservar a paisagem, mas sem a congelar. Por isso, a nossa candidatura foi a de paisagem cultural evolutiva e viva. Assim, garantia-se aos agricultores que podiam modernizar a sua viticultura, desde que houvesse excelência das novas formas de adaptação do terreno, nomeadamente em relação ao tipo de amarração do terreno, passando de terraços com muros sustentados de xisto para formas sem muros de pedra, definindo-se as bordaduras nas estradas e nos contornos das parcelas. Congelar o Douro num museu era o pior que podia acontecer, até porque teríamos uma reação negativa dos agricultores. Havia a preocupação de manter a paisagem, mas com patamares que permitissem a mecanização. Teve-se consciência que era necessário evoluir. Eu sou um homem da engenharia rural, venho da área da modernização da viticultura e da mecanização. Definimos declives-limites para cada um dos sistemas, desde a vinha ao alto em zonas de maior declive. Lembro que houve […]