O sudoeste alentejano, onde um parque natural foi colocado sobre uma zona de agricultura intensiva, sofre de uma “contradição insanável”, considera o historiador António Quaresma, para quem pode ser a área protegida a grande derrotada.
Doutor em História, professor e autor de vários livros e estudos sobre o litoral alentejano, António Quaresma nasceu e vive em Vila Nova de Milfontes, de onde tenta ter um olhar isento sobre o que se passa na região, onde coexiste o Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina (PNSACV) e o Perímetro de Rega do Mira, caracterizado por estufas e agricultura intensiva, aos quais se junta uma cada vez maior pressão turística.
Há, portanto, nas palavras do historiador em entrevista à Agência Lusa, uma contradição insanável, “um caldo” a que se junta ainda a presença muito forte de imigrantes.
E o PNSACV, diz, “está em perda de velocidade”, algo que nem é de agora. E dá como exemplo o projeto falhado de agricultura intensiva do empresário francês Thierry Russel (anos 80 e 90), quando o Parque não foi capaz de impedir nada. “E neste momento, pela primeira vez, a existência do Parque é abertamente posta em causa. Nunca tal tinha acontecido”.
António Quaresma até esteve ligado à criação da área de paisagem protegida, antecessora do PNSACV, e gostaria que a região fosse só parque natural. Mas admite: “Hoje isso é impensável porque existe uma economia. Neste momento penso que é mais possível deixar de ser parque do que deixar de ser zona de rega”.
Porque, justifica, e ainda que as empresas agrícolas se vão sentindo apertadas por regulamentos e sensibilidades locais, há a criação de emprego. “Já se criaram interesses suficientes à volta da agricultura, e muitos deles legítimos, que fazem com que seja muito difícil voltar atrás com o processo”.
Continuando a existir as duas realidades, defende, deveria criar-se um desbloqueador de tensões, uma entidade que juntasse todos as partes, uma espécie de ‘task force’.
E, no entanto, nem sempre foram difíceis as coisas. Em sua casa, rodeado de livros, o historiador resume como se chegou à situação que a região vive hoje, começando pela criação, em 1988, da Área de Paisagem Protegida do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina.
Contribuíram para isso os estudos sobre biologia, que davam a conhecer uma zona muito preservada em termos paisagísticos, biológicos e botânicos, contribuiu a vontade do então secretário de Estado do Ambiente Carlos Pimenta, contribuiu o envolvimento da associação LPN (Liga para a Proteção da Natureza), e contribuiu um grupo de ecologistas e ambientalistas locais, António Quaresma incluído. E a autarquia apoiou.
A Área de Paisagem Protegida evoluiu na década de 1990 para Parque Natural. Onde existia havia duas décadas uma zona de agricultura intensiva, o chamado Aproveitamento Hidroagrícola do Mira, composto pela barragem de Santa Clara, que ficou cheia em 1968, e canais de rega que abrangem mais de 40 quilómetros.
Com a criação do parque natural não houve conflitualidade, apesar de existir já alguma agricultura intensiva, diz o historiador. Mas, explica, sobretudo a partir da década 1990, começaram a instalar-se empresas, algumas estrangeiras, começaram a desaparecer ecossistemas valiosos, como os charcos temporários, e começaram também “os equívocos”.
“Quando Thierry Russel esteve aqui comportou-se como se não existisse o Parque Natural. Arrasou linhas de água, arrancou marcos das linhas de água. E fez com conhecimento das autoridades. O Parque viu-se perante uma situação de facto consumado e, se o diretor do Parque criticava, o poder político mandava-o calar. Esse foi o primeiro embate”.
Com o crescimento da agricultura, a população local conseguiu empregos mais qualificados. Mas não bastava e começaram a surgir os imigrantes, primeiro do leste da Europa e mais recentemente de países como a Índia ou o Nepal. Apesar de serem comunidades pacíficas, diz António Quaresma que surgiu “uma situação passível de criar problemas”.
“A existência de grande quantidade de gente do oriente faz com que exista um ‘stress’ local, que eu chamo de racismo”, visível inclusivamente na rede social Facebook, “onde hoje se passa tudo”.
E quando se põe em causa a existência de tantos imigrantes “põe-se em causa o modelo que os traz”, e nos últimos tempos “criou-se uma situação de confronto”, juntando a questão do Parque, o ambiente, a falta de água, fazendo aparecer movimentos como a associação Juntos pelo Sudoeste, “que tem uma posição muito crítica em relação ao atual modelo de crescimento, que não respeita o território, que produz problemas sociais”.
E a tudo isto o historiador junta “os desalinhados, sem discurso elaborado e com uma atitude de repulsa em relação aos estrangeiros”, e junta ainda o endurecimento do discurso por parte das empresas, a dizerem que a água é para a rega e que o Parque foi criado quando já existia o perímetro de rega.
E há de facto, diz, um problema de falta de água, com a barragem de Santa Clara a meio no fim do Inverno, onde a água já tem de ser bombeada quando o sistema foi construído para funcionar por gravidade (a barragem a uma quota mais elevada e a água a correr por canais e a que sobre é despejada no mar, o que provoca grandes desperdícios).
António Quaresma resume a atual situação no PNSACV como a luta entre duas linhas, os que criticam e os que defendem o atual modelo, envolvidas por uma “grande quantidade de gente que não gosta de imigrantes”. Entre os que dizem que o Parque não tinha de ser criado num sítio que já estava previsto para agricultura, e os que põem em causa a existência das estufas.
E depois há o turismo, que nunca se preocupou muito com a agricultura, mas que passou a criticar o excesso de plástico das estufas, com impacto visual forte e com impactos negativos na procura turística.
“Começam a ser nítidos vários interesses e esses interesses começam a ter consciência dessa conflitualidade. Agora, com a pandemia [de covid-19] isso atingiu o auge e neste momento a coisa está de facto acirrada. E quando o primeiro-ministro vem e diz que temos de arranjar condições dignas para imigrantes, que são pessoas que vivem cá e que têm tantos direitos como nós, um discurso que eu acho que é correto, aqui, muita gente não gosta dele, porque isso é aceitar a existência destes imigrantes”, descreveu.
E a tudo junta-se ainda outro problema, nas palavras do historiadore, que é a grande falta de monitorização do que se passa com os solos, com as águas, a falta de coordenação entre entidades. “Parece que alguém gosta que se mantenha esta ignorância”.
E como tudo isto se resolve? António Quaresma não sabe. E nem tenta sequer ser otimista.
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