Miguel Bastos Araújo, que foi meu co-orientador de doutoramento, e com quem me dou bastante bem, independentemente das divergências que com o tempo têm vindo a crescer (eu serei um vendido aos interesses, provavelmente), levou-me a esta peça do Expresso, escrita por Carla Tomás (que também conheço).
Como penso que é evidente, as causas ambientais vão passando pelos jornais em revoadas e as estufas do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina algarvia estão na berlinda, à conta da COVID.
Como é normal no movimento ambientalista, o que é preciso é cavalgar o momento, e de repente os impactos das estufas nos valores naturais presentes na área voltaram à ribalta.
Já se fala neles há uns trinta anos, estão sempre a extinguir-se até à campanha seguinte em que se volta a dizer que os valores que estavam a extinguir-se agora é que vão mesmo extinguir-se, às vezes variam, ora são os charcos temporários, ora é a águia pesqueira, o petróleo, os portinhos de pesca, as lontras que tomam banho no mar, enfim, existem variações, mas o certo é que (escolher a ameaça de que se fala no momento) vai extinguir os valores que lá estão (e que afinal não se extinguiram com a ameaça anterior).
Sabendo disto tudo, o artigo a que liguei acima não me faz reagir por aí além: a mera leitura do título explica o que se pode esperar: “Estufas extinguiram os últimos cinco charcos que serviam de habitats prioritários na costa sudoeste”. É um título surrealista, quer porque não se sabe o que quer dizer “charcos que serviam de habitats prioritários” (ou são, ou não são habitats prioritários) e estes são cinco de entre 133 levantados no estudo citado, vários deles, provavelmente, em melhores condições ou mais facilmente conservados, ou seja, a peça não acrescenta muito ao contexto que referi acima.
O interessante é um comentário do Miguel: “a minha opinião é muito simples: existe incompatibilidade entre os objetivos de um parque natural e os da agricultura intensiva e este é um exemplo extremo desta incompatibilidade”.
A questão que é levantada é uma questão muito interessante e talvez eu precise de ir um bocado atrás para explicar o seu interesse e dificuldade de resposta.
Quando os primeiros parques nacionais foram feitos – pelo departamento do interior dos EUA, através de decisão do Senado – a ideia central era a de manter intocado um determinado território, parecendo por isso evidente a necessidade de separar a actividade humana e a conservação da natureza.
Quando esta ideia se procura aplicar em paisagens velhas como as da Europa, rapidamente se percebeu que a conservação dos valores e paisagens existentes eram incompatíveis com esta separação entre actividade humana e processos naturais – embora existam alguns exemplos, de maneira geral feitos em ditadura, como o Parque Nacional de Plitvice, na Croácia, que é hoje lindíssimo, mas implicou a deslocação de várias aldeias e o fim da actividade humana na área, com excepção do recreio e da musealização de uma aldeia que ficou lá a fazer de cenário, se bem me lembro – e portanto a ideia evoluiu para a conservação de formas de gestão do território que estavam em risco, assentes em actividades tradicionais.
Só que nenhuma das duas ideias anteriores asseguravam os processos ecológicos mais amplos (para além de que a ideia inicial de manter as coisas intocadas se revelou impossível, a natureza evolui sempre), sendo claro que a criação de ilhas de natureza no meio de paisagens humanizadas não garantia a conservação de muitos processos naturais a que estava associada a conservação das espécies.
Usando as espécies migratórias como ponta de lança – não é possível conservar uma espécie na zona de Invernada se não houver boas condições na zona onde passa o Verão – foram-se desenvolvendo processos internacionais que foram forçando a integração cada vez maior entre conservação e actividade humana, ao ponto de hoje, grande parte dos valores europeus protegidos nas directivas aves e habitats, serem valores que dependem da gestão activa para manter o grau de perturbação adequado – mais uma vez, também aqui se aplica o velho princípio de Paracelso de que a diferença entre veneno e remédio está na dose.
No caso do Parque do Sudoeste Alentejano (não vou distinguir aqui área protegidas e rede natura, é irrelevante para o argumento que estou a desenvolver), as figuras jurídicas e regulamentares, mas também os recursos mobilizados para a conservação dos valores presentes, são todas posteriores ao perímetro de rega que lá existe.
No caso específico dos charcos temporários, que são pequenas ilhas num território vasto, a sua conservação é relativamente contida, do ponto de vista geográfico, não exigindo grandes áreas como a conservação dos grandes mamíferos, por exemplo.
A conservação de um charco em concreto é incompatível com a criação de uma estufa no mesmo local, sendo por isso perfeitamente defensável dizer-se que se tomou uma decisão errada – não sei, não conheço o processo, estou a discutir em tese – ao permitir instalar uma estufa naquele sítio em concreto, onde havia circos charcos (não tenho informação para saber se eram ou não habitats prioritários, não tenho informação sobre isso, mas eram com certeza charcos que, geridos correctamente com esse objectivo, tinham potencial para evoluir para habitats interessantes e, provavelmente, essa teria sido a obrigação do Estado português e, já agora, da sociedade).
Só que a existência de um conjunto de estufas naquela zona não é incompatível com a conservação dos charcos, implica com certeza negociação, implica com certeza recursos, implica com certeza mais trabalho para conciliar os dois interesses – igualmente legítimos – e a directiva habitats tem mecanismos para que isso seja possível.
Mais interessante ainda, se desde o princípio se tivesse considerado que havia essa incompatibilidade – e os sectores ligados à agricultura sempre o defenderam, por isso sempre se opuseram ao Parque Natural, à Rede Natura e aos instrumentos de ordenamento e conciliação inerentes – hoje não haveria quase nenhuns valores para conservar porque há muito teriam sido destruídos.
O que existe neste momento, incluindo a conflitualidade inerente à permanente tensão entre interesses contraditórios, é a solução mais simples e a solução ideal?
Não, seguramente não é, o que é agravado pelas deficiências de toda a administração (e da sociedade, curiosamente não vejo movimentos, quer das empresas da região, quer dos ambientalistas, para comprar os charcos mais importantes para os dedicar à conservação, sem o risco de serem entregues à exploração intensiva) na gestão de um problema complexo.
Pessoalmente, não conheço soluções simples para problemas complexos, este é um problema complexo e exigirá sempre soluções complexas, por isso achei, e acho, a questão levantada tão interessante, ao contrário das proclamações quase diárias de ambientalistas sobre o assunto que, de maneira geral, são intelectualmente confrangedoras.
O artigo foi publicado originalmente em Corta-fitas.