Para o presidente da Liga dos Bombeiros Portugueses, esse cenário só poderá ser alterado se existir uma verdadeira alteração na gestão e ordenamento da floresta.
Voltamos novamente à época dos incêndios, nada muda de ano para ano, parece que os episódios se repetem constantemente…
Repetem-se ao longo dos anos e poderão continuar a repetir-se pelos anos fora e até com pior incidência e com maior gravidade, atendendo a que em termos de planeamento e ordenamento do mosaico florestal, da lotação de espécies, nada muda.
Deve-se alterar profundamente a paisagem florestal, no sentido de fazer infraestruturas de linhas de corta-fogo, de levar a cabo uma definição estratégica de compartimentação da floresta e de uma revisão profunda e de implementação no terreno – em termos de legislação nada falta – para orientar num sentido completamente diferente o território florestal português.
E isto, deve ser feito a partir de três perspetivas: ambiental, de segurança das pessoas e criação de riqueza, porque a floresta é uma fonte de criação de riqueza e Portugal não a sabe aproveitar. De tal forma que, Portugal, sendo um país florestal e tendo indústrias transformadoras, tem necessidade de importar madeira para ser transformada e Portugal não retira disso as mais-valias.
Retira o mau que vem dos incêndios florestais, mas não retira o rendimento que a floresta pode dar e, ainda por cima, temos de enfrentar todos os anos incêndios florestais ou rurais e isso é uma mise-en-scène que podem atingir a qualquer momento situações de catástrofe tais como aconteceu em Pedrógão Grande que pode não vir a ser caso único. Alias, é algo que poderá vir a acontecer no futuro, com maior frequência porque cada vez mais a nossa floresta está pior. E aí responsabilizo os políticos do setor: o ministro da Agricultura, secretários de Estado das Florestas, o ICNF, aqueles que após o 25 de Abril não foram capazes de modernizar a nossa floresta e encontrar antídotos que pudessem resolver o êxodo das populações do interior para o litoral, o envelhecimento das populações, a falta da necessidade de utilização das madeiras, dos matos, ou seja, de todo um conjunto de situações de produção agrícola.
Ao mesmo tempo que a floresta tem crescido selvaticamente, tem vindo a aumentar em quantidade de hectares a floresta mais mal tratada com o abandono da agricultura. Isso acontece devido ao envelhecimento das populações, ao êxodo das populações. Mas vamos à questão do envelhecimento: já não têm capacidade física para potenciar e desenvolver os trabalhos da floresta e, ainda por cima, não têm capacidade financeira nem rendimento suficiente para tratar esse espaço. E o rendimento que têm é para a sua alimentação, para os medicamentos e para um conjunto mínimo de qualidade de vida.
Conclusão: perdemos produção agrícola de boa qualidade e transformamos a floresta num espaço completamente desordenado. Além disso, todos sabemos que 96 ou 97% da floresta portuguesa é propriedade privada. Mas se compararmos essa propriedade privada com os 3 ou 4% do Estado, a do Estado está tão mal tratada ou pior do que a propriedade privada.
Se há legislação nessa matéria, o que é que falta? Vontade, verba?
Há verba que é anunciada para as infraestruturas florestais e tantas vezes é repetida que de milhares passa a milhões. Mas essa conversa é muita parra e pouca uva. Em Portugal não faltam técnicos com competências para fazer uma floresta do melhor que há na Europa.
Nos meus tempos de deputado e de presidente de Câmara – e foram muitos anos com responsabilidade neste setor da proteção civil onde as florestas estavam incluídas – estive em vários países da Europa com deputados, com presidentes de Câmara, com experts na matéria e havia discussões em que os portugueses davam autênticas lições de como é que se faz um ordenamento e um planeamento florestal.Mas depois os resultados estão à vista…
Mas isso obriga a que os políticos tomem decisões. Não é andar a fazer o livro rosa, o livro branco, o livro laranja, o livro vermelho para depois porem nas prateleiras da Assembleia da República. Isso não tem interesse nenhum e muita da legislação que está por lá não se aplicou. Pedrógão Grande devia ser um exemplo do mal que aconteceu. Claro que há muitas coisas para falar sobre Pedrógão Grande.
Da própria falta de preparação das populações, que em alguns aspetos se suicidaram, saíram das suas casas onde estavam em segurança e foram para o meio do fogo onde morreram. Como em outras zonas ficaram em casa e morreram na mesma, parece que é preso por ter cão e preso por não ter. Mas isto é a demonstração inequívoca da incapacidade de planeamento das estruturas portuguesas mesmo quando o incêndio está a eclodir. Os bombeiros são operacionais para apagar, agora já há outros também a GNR, os sapadores florestais e há entidades que têm responsabilidades específicas. As funções de deteção e de vigilância é da GNR e das polícias.
Também no que toca à evacuação das populações, o papel principal cabe à GNR. Aos bombeiros cabe um papel mais complicado e que têm vindo a ser capazes porque têm tido mais formação, maior capacidade de intervenção e porque tem melhorado um pouco o seu parque automóvel apesar de ainda estarem carros antigos com 10, 15 e 20 anos a circular. Mas há esse exército dos soldados da paz e da vida, que estão sempre disponíveis.
A maioria esmagadora dos bombeiros são voluntários e são eles que ainda conseguem evitar males maiores. Mas o problema está a montante e diz respeito ao planeamento e ordenamento da floresta e às estratégias de intervenção florestal, que não se fazem. Isto é problema cultural de fundo da sociedade portuguesa. Os próprios baldios das associações são um verdadeiro falhanço, há algumas que funcionam – chamo associações de compadres – mas foi um erro tremendo.
A maior parte das freguesias a quem as associações não foram capazes de levar por diante o projeto entregaram às freguesias e agora estas estão a entregá-las às celuloses, que visam o lucro. Com certeza que a propriedade florestal gerida pelas celuloses está mais segura, mas assistimos a uma autêntica massificação do eucalipto.
Não sou contra o eucalipto, há eucalipto que se planta onde se pode plantar, mas há eucalipto onde não se pode plantar e tem de se plantar outras espécies, tem de se fazer um mosaico florestal com espécies autóctones resistentes ao fogo a acompanhar as tais infraestruturas de linhas corta-fogo, de aceiros, de valsas de água, de um conjunto de pontos estratégicos para melhor implementação da estrutura de combate.
Não podemos esquecer – e é bom que se diga isto – que só 4 ou 5% dos incêndios florestais são causadores por 96% da área ardida. Portanto, os outros 96% são incêndios apagados logo à nascença, duram uma hora, uma hora e meia, duas horas. Ainda assim, este dispositivo para 2021 está muito melhor, há um bom relacionamento hoje que não havia há meses atrás com a Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil, discutem-se as coisas, fala-se do plano, aprova-se o plano de intervenção, o plano operacional.
Depois há um outro plano que é a diretiva financeira, nessa há divergências, mas também conseguimos equilibrar mas fica muito aquém das despesas que os próprios bombeiros fazem em relação a toda a sustentação do sistema e temos de ver que é uma guerra com duas frentes de batalha: é o fogo propriamente dito e é também a covid-19, uma vez que há muitas movimentações de bombeiros, e tudo isto entra na estrutura dos bombeiros.
É quase como por uma raposa dentro da capoeira…
É. E está bem demonstrado com o que se passou no ano passado, em que os bombeiros foram capazes de superar as batalhas, ganhar a guerra. Ao contrário do que muita gente pensa, os bombeiros são o enteado, são o filho bastardo de todo o sistema de apoios económicos e financeiros. Há associações que estão e sempre estiveram em debilidade financeira e, muitas delas, estão a um passo da insolvência.
Maioritariamente os bombeiros pagam para socorrer. Os incêndios florestais só representam 7% da nossa atividade. Fazemos 95% da atividade do INEM a custos 70% abaixo dos custos do INEM com os mesmos conhecimentos, com as mesmas capacidades, com o mesmo profissionalismo. Em nada, os tripulantes das viaturas do INEM são superiores aos dos bombeiros. Somos responsáveis por 98% do socorro em Portugal. Os transportes de doentes não urgentes são todos feitos pelos bombeiros.
E o que as pessoas pensam é que há um pagamento de x por quilómetro, mas com o aumento do salário mínimo nacional, com o aumento do preço dos combustíveis e dos custos da reparação das viaturas, 10 cêntimos não chegam para equilibrar, nem sequer é para dar lucro.
Os bombeiros portugueses não querem ganhar dinheiro à custa de serviços que prestam, querem é ser úteis à sociedade que os viu crescer e que os criou. Os bombeiros portugueses são, na sua maioria esmagadora, uma emanação direta das populações. Nascem delas, convivem com elas e morrem por elas. Os Governos e o Estado em si, ao longo do tempo, têm gozado, desrespeitado e ofendido este grande exército de mulheres e homens, em que a grande maioria continua a fazer o voluntariado.
Mas a verba podia vir de onde? Dos cofres do Estado?
Das próprias companhias de seguros, de onde vinha mas que foi desviado, agora é para o INEM. Vinha do totobola e do totoloto, do euromilhões não vem nada para os bombeiros. O Estado tem a obrigação de salvaguardar as vidas das suas populações, tem de criar condições de qualidade de vida aos cidadãos, na saúde, na justiça, na educação, também na economia e também na proteção civil. Os bombeiros são a grande força da proteção civil.
E há uma coisa: Portugal sem os bombeiros era uma miragem. Podem criar superstruturas mas estas só estão instaladas nas grandes cidades e nas grandes vilas, por isso é que só há 25 corpos de bombeiros sapadores e só cobrem as zonas que são mais populacionais.
Quem é que cobre o espaço territorial português de ponta a ponta? O espaço mais recôndito e mais abandonado, onde o centro de saúde, os médicos, as farmácias, os bancos estão a quilómetros de distância? Há um êxodo muito grande para o litoral, depois com os problemas gravíssimos que isso cria ao litoral, em termos de habitação, de qualidade de vida, de prostituição, de roubo, enquanto se vai deixando envelhecer as populações dessas terras e sem nada fazer por elas.
Essas populações estão abandonadas e as terras só têm movimentação quando lá vão os bombeiros acudir às pessoas que estão sem ninguém. Se não for o bombeiro, anjo-da-guarda, não vai lá ninguém. Fizeram-se superstruturas da GNR que são responsáveis pela deteção, mas a vigilância e a deteção tem de ser ao milionésimo de segundo.
Os portugueses e a comunicação social, principalmente as televisões, só mostram os grandes incêndios mas não são capazes de dizer que, naquele momento em que há aqueles grandes incêndios e estão lá 500 bombeiros, 600 ou mil a trabalhar, há 50, 70, 80 incêndios a lavrar por esse país que os bombeiros estão a apagar ao momento. Há insuficiências mas não é dos operacionais no terreno.
Há efetivamente falhas de organização que têm de ter uma inversão de 180 graus, mas agora não é altura para se falar sobre isso, é uma altura em que é preciso serenidade e confiança nos operacionais e esta pode existir porque somos os melhores bombeiros da Europa e do mundo.
Mas se não tiverem condições…
O problema é que há falta de organização estrutural no combate e isto não quer dizer que não haja um bom relacionamento com a autoridade. Mas há que reformular muitas mentalidades, há que acabar com muitas vaidades e tratar as coisas como devem ser tratadas. É preciso fazer bem aquilo que já se sabe, mas deve-se fazer melhor. E todas as forças que estiverem escaladas para o teatro de operações têm de estar sempre empenhadas a trabalhar, não têm de estar à espera que lhes deem ordens. Muitas vezes não atuam porque estão à espera que lhes deem ordens, isso não pode existir.
Às vezes um segundo ou dois de hesitação…
Cada responsável pelo seu setor tem de ir para o terreno e fazer aquilo que deve fazer, na frente de batalha, não é estar a espera do incêndio aqui, ali ou acolá e perguntar se o incêndio está ali porque é que não se vai ali. Todos aqueles que vão a caminho para um teatro de operações já devem ter as indicações para o caminho onde devem estar em estrada e não têm de estar à espera, como muitas vezes acontece. “Ah, eu não avanço porque estou à espera de ordens”. Há falhas numa estrutura que tem de ser muito mais afinada, trabalhada para que determinadas situações que o próprio povo levanta e que gostaria que não tivessem razão, mas que em alguns aspetos têm razão.
Também se fala muito dos atrasos…
Estas pequenas que podem ser grandes questões têm de ser reavaliadas, auditadas e corrigidas. Nunca se pense que o que aconteceu em Pedrógão foi por falta de capacidade, falta de intervenção ou falta de conhecimento. Não foi. Foi por aquilo que disse e continuo a dizer: a nossa floresta é um espaço contínuo de combustível.
É uma bomba-relógio?
O Estado fez ouvidos moucos, durante muitos anos, face aos que os cientistas diziam sobre o aquecimento global do planeta, às baixas taxas de humidade, aos ventos atípicos, à nossa localização na influência do Mediterrâneo que nos tornou num país de crescimento muito rápido em termos de floresta. Como disse, 97% da floresta é privada e o individual não se pode sobrepor ao coletivo.
E, para isso, tem de se criar legislação: não é expropriação dos terrenos, não é retirar os terrenos às pessoas, é uma lei expropriante de utilização do espaço florestal em que o cidadão tem de deixar que o seu espaço florestal seja incluído num projeto porque não se pode fazer planeamento e ordenamento em pequenos projetos. Tem de ser em grande e receberá uma percentagem igual do rendimento como todos os outros.
Mas há multas para quem não faz as limpezas. Foi insuficiente?
Isso é uma mise-en-scène, é um paliativo. Claro que há outra sensibilidade depois do incêndio de Pedrógão, mas se formos hoje à região vemos tudo como estava ou ainda pior. A nossa floresta nunca esteve tão mal como está hoje. Há quantos anos o atual presidente da Liga e atual presidente dos Bombeiros e da Câmara e da Associação de Municípios dizia que tinha de se fazer uma floresta diferente e que se devia rapidamente fazer o cadastro? Porque não se fazendo o cadastro para se ver quem é a floresta, não se pode fazer legislação. Não se consegue descobrir os proprietários.
Era essa a primeira coisa a fazer no cadastro da floresta portuguesa. Ainda hoje, uma grande parte da floresta portuguesa não está cadastrada. Essa é uma demonstração inequívoca do falhanço do Estado. É incompetente e não foi capaz. E, portanto, tem de assumir essa responsabilidade. Posso lá aceitar que há cerca de quinze dias, o ministro do Ambiente venha dizer que ia pôr os viveiros do Estado a produzir espécies para fazer plantações de árvores, espécies autóctones, mas o que é isto?
Entregar isso aos viveiros do Estado é fazer como o caracol: devagar, devagarinho, parar, fazer marcha atrás… Tem é de criar com os produtores florestais, com os viveiristas do nosso país, para que produzam em quantidades industriais árvores e sensibilizar as populações, criar grandes brigadas, mas com manchas definidas e planeamento. Não é fazer o show off para a fotografia e para as televisões, onde aparece o ministro, o senhor primeiro-ministro, o Presidente da República a plantarem uma árvorezinha. Isso não é nada. Isso […]