Terminou, nesta quarta-feira, o período de consulta pública ao Estudo de Impacto Ambiental (EIA) do Projeto Agroflorestal das Herdades de Murta e Monte Novo, promovido pelo grupo AQUATERRA, o qual é detentor de várias empresas, incluindo a empresa promotora do projeto agroflorestal na Herdade da Batalha. A ZERO submeteu o seu parecer, numa consulta pública que contou com assinalável participação cívica.
O projeto propõe a instalação de um empreendimento agroindustrial, com mais de 800 hectares (ha), para a produção e exportação de abacate, em plena Zona Especial de Conservação (ZEC) da Comporta/Galé, em área de habitats dunares. A monocultura de regadio dependerá de 34 furos de captação de água subterrânea e do abastecimento do perímetro de rega do Vale do Sado.
Projeto sobredimensionado pode pôr em causa os recursos hídricos
Para a produção de abacate, o promotor dimensionou o sistema de rega contando com um uso anual de mais de 4 milhões de metros cúbicos (4 hm³) de água, cerca de 3 hm³ provenientes de águas subterrâneas e 1 hm³ do Aproveitamento Hidroagrícola do Vale do Sado (AHVS).
Para justificar o direito ao uso destas quantidades de água subterrânea, o grupo AQUATERRA contraria os valores considerados pela entidade competente quanto aos recursos hídricos disponíveis nos aquíferos (3.º ciclo do Planos de Gestão da Região Hidrográfica), propondo critérios próprios para pintar um cenário mais favorável a fim de justificar uma maior extração de água. A massa de água subterrânea em questão, denominada Bacia Tejo–Sado/Margem Esquerda, tem já apresentado indícios de sobre-exploração nalgumas áreas.[1] Quanto ao uso da água proveniente das barragens do Vale do Gaio e Pego do Altar, esta só poderia ser feita com uma autorização de água a título precário, dado que os terrenos a regar estão fora do perímetro de rega do AHVS. Contudo, o Governo restringiu a contratualização de água proveniente de perímetros de rega coletivos públicos para culturas permanentes, como salvaguarda da capacidade de gestão da água face a situações de maior escassez e a cautela de transformação permanente do uso e ocupação do solo que podem constituir impactes cumulativos aos perímetros de rega oficiais.[2]
Um quinto da área da Rede Natura 2000 incompatível com a conservação
O projeto desenvolve-se nos limites da Reserva do Estuário do Sado, em ecossistemas com habitats dunares com zimbrais e outras espécies protegidas ao abrigo da Diretivas Habitats e Aves.[3] Foram identificadas espécies RELAPE, endemismos ibéricos e lusitânicos na área de influência do projeto.
A afetação e fragmentação destes habitats podem pôr em causa as medidas de conservação previstas. O Plano de Gestão proposto para a ZEC estabelece medidas para restringir a conversão de floresta e dos agrossistemas existentes. A proliferação de projetos turísticos e de intensificação agrícola tem levado a uma artificialização da ZEC da Comporta/Galé, ultrapassando já os 4 000 ha. Caso o projeto venha a ser aprovado, as áreas incompatíveis com a conservação dos valores naturais protegidos irão atingir cerca de 17 a 18% da área classificada, pondo em causa a integridade da ZEC.
Metas de proteção da natureza em risco devido à artificialização de áreas classificadas
A Estratégia Biodiversidade para 2030 da União Europeia, parte fundamental do Pacto Ecológico Europeu, estabelece a meta de proteger 30% da área terrestre da Europa, a par do restauro de ecossistemas degradados.
A Resolução do Conselho de Ministros n.º 190/2023, publicada a 26 de dezembro de 2023, pretende reconhecer que Portugal já tem “34,8 % da superfície terrestre com estatuto de proteção” e que reúne, portanto, “as condições para cumprir a meta de proteção legal de, pelo menos, 30 % da superfície terrestre, meta essencial para deter e reverter a perda de biodiversidade, a nível nacional e mundial”. No entanto, de pouco serve possuir área com proteção legal para a conservação e recuperação da biodiversidade se, na prática, largas proporções são transformadas através de empreendimentos incompatíveis com estes fins. Por uma questão de honestidade, para o cálculo deveriam ser apenas consideradas as áreas onde esta proteção efetivamente ocorre.
O projeto em avaliação é paradigmático: não deveria suscitar dúvidas que a instalação numa Zona Especial de Conservação de mais de 800 hectares de produção agroindustrial, caracterizada pela intensificação do uso do solo, por altas exigências hídricas e uso de agroquímicos, é uma impossibilidade se os decisores públicos levassem a sério o papel de preservação da biodiversidade atribuído a esta área incluída em Rede Natura 2000.
[1] Reunião de 13 de outubro de 2023 da Comissão Permanente de Prevenção, Monitorização e Acompanhamento dos Efeitos da Seca
[2] Despacho nº2/2023 do Ministério da Agricultura e Alimentação, que revoga o Despacho nº17/2019, encarrega a DGADR (autoridade do regadio) a “diligenciar no sentido de não serem concedidas autorizações para o fornecimento de água a título precário para (…) novas instalações de culturas permanentes”.
[3] Diretiva 92/43/CEE e Diretiva 2009/147/CE
Fonte: ZERO