Quando se bebe um Barbeito bebe-se — tomem atenção — “um vinho que é uma mistura de misturas das misturas”. Os eternos vinhos Madeira são mistério e alquimia, com muitos riscos pelo meio.
Num mundo ideal, cada português apaixonado por vinhos deveria ter acesso às provas que Paulo Cruz organiza no seu Porto Extravaganza, que é a grande escola de vinhos fortificados de Portugal. E se o mundo fosse justo, mas mesmo justo, cada português deveria — nessas jornadas que ocorrem em Sintra — ter o privilégio de ouvir o Ricardo Diogo, da Barbeito (Vinhos Madeira). Isso não é desconsiderar os outros produtores de Porto, Moscatel ou Carcavelos. De modo algum. Mas a questão é quando o responsável da Barbeito aparece em palco sabemos que vamos ouvir alguém que não tem papas na língua (assim aprende-se mais) e que vamos provar vinhos com 30, 40, 50, 100 ou 150 anos.
Foi assim em 2018, quando o vinho Madeira entrou pela primeira vez no Porto Extravaganza, e voltou a ser assim em Março passado. Então como agora, depois de duas horas para provamos dez vinhos, a pergunta é sempre a mesma: como é possível? Como é possível estarmos perante vinhos com 100 ou 150 anos e andarmos com o parceiro do lado a fazer apostas sobre mais quantas décadas serão necessárias para estes vinhos iniciarem a sua curva descendente? Em rigor, ninguém sabe.
Quando estamos perante vinhos com indicação média de idade e por casta é evidente que o que está em causa é — vinhos base à parte — a arte de quem faz o blend. Blender ou master blender são os conceitos que se aplicam por todo o mundo quando falamos destes assuntos, mas Ricardo Diogo gosta de dizer que é um fulano que faz “umas misturas com os ingredientes que tem na adega”.
No mundo do Porto, do Moscatel, do Carcavelos, do Jerez ou do vinho Madeira, a condição para se fazer uma boa “mistura” é conhecer ao detalhe o que existe na adega. No caso da Barbeito, isso significa que o criador de vinhos da empresa tem de provar o seu stock de 1,2 milhões de litros três a quatro vezes por ano. Agora, o mundo do vinho Madeira tem especificidades, em particular na feitura das categorias premium: é que os vinhos estão guardados em cascos, garrafões ou garrafas, estrategicamente distribuídos em diferentes espaços dos armazéns porque as temperaturas influenciam determinantemente a evolução e os perfis dos vinhos.
E isto é assim porque, na feitura de um lote, é necessário encontrar-se características de evolução (aromas, acidez, estrutura ou concentração de açúcar e álcool) para a construção de um vinho desejavelmente harmonioso. E como também é preciso juntar vinhos de colheitas por vezes muitos distantes, é fácil imaginar a complexidade e o melindre do processo.
Complexidade que ainda cresce quando o master blender sabe que a gestão dos stocks é algo que tem de ser projectada a décadas de distância, visto que a feitura de vinhos de lote com 100 anos daqui por 5, 10 ou 20 anos dependerá da guarda — hoje — de vinhos muito velhos. Trata-se de uma equação com muitas variáveis.
Dir-se-á que, com a experiência, tudo se torna simples, mas um cálculo mal medido e o prejuízo pode provocar um colapso cardíaco ao director financeiro ou ao dono da Barbeito. Que o diga Ricardo Diogo que nunca esquecerá uns lotes feitos a partir de 700 litros de vinhos com mais de 100 anos e que tiveram de ser destruídos (“misturas desequilibradas”). Detalhe, cada litro foi comprado a 150 euros; prejuízo, 105 mil euros.
Por que razão você é assim tão franco? Isso faz parte da construção de uma personagem? “Eu?! Não. O que eu faço é um produto para consumo humano e para dar prazer — mexe com o corpo e a mente das pessoas. E, por isso, a minha obrigação é ser totalmente transparente. Com os consumidores e, também, com os enólogos que chegam aqui à minha adega e observam tudo. Eles aprendem comigo e eu aprendo com eles. Quem está nesta vida está sempre a aprender. Sempre”, diz-nos.
Mas vamos ao desfile daqueles lotes de edições especiais da Barbeito que perfumaram uma das salas da Casa dos Penedos (mistura de tenda de especiarias marroquinas com loja de perfumes francesa ou italiana), explicados pelo homem da Barbeito com uma abertura de espírito e partilha que encanta e deixa qualquer amante de Madeiras deslumbrado.
Garrrafões da Vó Vera — Verdelho 30 anos
PVP 350 euros
O arranque da prova é uma espécie de aquecimento para os vinhos mais complexos que se seguem, embora Ricardo Diogo garanta que a atenção que dá a um vinho de categoria superior é a mesma que dá a um vinho de entrada de gama. Este Verdelho que homenageia a avó de Ricardo tem 15% de um varietal da casta com 100 anos e que estava em garrafão. Como acontece quando se fazem lotes apenas de vinhos de garrafão, a exuberância aromática nunca é explosiva, mas este Madeira 30 anos destaca-se por umas curiosas notas de ervas secas e uma secura impressionante.
O Escanção — Malvasia 40 anos
PVP 400 euros
Este é um vinho que fará parte de uma nova vida […]