José Roquette, com 85 anos, poderia limitar-se a contemplar a paisagem alentejana a partir do jardim – ou do drone que usa para ver os animais que circulam na Herdade do Esporão. Em vez disso, levanta-se de madrugada para estudar, cuidar da educação dos netos e desinstalar-se. Esta entrevista é sobre o Esporão. Ou melhor, também é sobre o Esporão, porque com o antigo banqueiro uma conversa começa com astronomia, passa para os desafios do modo produção biológico e pode acabar com uma dissertação diante de uma oliveira com mais de 2000 anos. Haja energia para acompanhá-lo.
Nas vésperas do lançamento da quarta edição do Torre do Esporão – o vinho premium da herdade –, José Roquette explicou-nos que o sucesso da marca Esporão se deve à estratégia de distribuição desenvolvida nos mercados externos, à transformação de toda a área de vinha para o modo de produção biológico e à cultura organizacional que dá mais importância à desinstalação do que à inovação.
Num país viciado em arranjar desculpas para justificar seu atraso, o José Roquette foi sempre obcecado em fazer de cenários a longo prazo. Dá ideia de que vive num eterno desconforto.
Se quer que lhe diga, não sei de onde vem esse desconforto, mas julgo que foi a vida que gerou em mim a necessidade para me desinstalar. Eu desinstalo-me todos os dias. Todos os dias sinto que tenho de fazer qualquer coisa diferente daquilo que aconteceu no dia anterior. Uma das palavras que mais se cita hoje é “inovação”. E se é óbvio que a inovação é uma ferramenta do desenvolvimento económico, ela só é eficaz se, antes, tivermos uma cultura de desinstalação.
E essa cultura de desinstalação no Esporão é algo que só está em si ou na cultura organizacional do grupo?
Estará em mim, no meu filho João e na cultura que desenvolvemos num grupo que, trabalhando no sector agrícola, tem a consciência de quão importante é a desinstalação e a inovação para a vida do planeta. Como empresa familiar, temos certas vantagens competitivas. E uma delas é a perspectiva intergeracional. Eu tenho a obrigação de olhar para a geração dos meus filhos, dos meus netos e dos meus bisnetos. Isso é uma inquietação diária.
Foi sempre assim?
Fui um promotor de rupturas, mas estive sempre disposto a pagar o preço por isso, porque certas opções têm riscos, como foi o caso do Movimento dos 101 Católicos [figuras públicas que no seguimento do Concílio Vaticano II se manifestaram contra as orientações do Estado Novo]. Foi a forma de dizermos que a condução política do regime não correspondia a uma dimensão de liberdade cívica e dimensão fraterna, no verdadeiro sentido teológico.
Mas hoje também há movimentos de jovens que se manifestam.
É verdade. E eu até reconheço que, em muitas matérias, o meu mundo foi uma passeata tranquila. Se tive turbulências, essas foram criadas por mim. Por insatisfação pessoal.
Os primeiros tempos do Esporão
O Esporão fará, em 2023, 50 anos. Em 1973, o que havia aqui?
Nada. A Torre e a capela estavam no chão, havia um curralito de vacas, uns armazéns agrícolas e pouco mais. Repare que, naquela altura, o Alentejo não produzia mais do que 3% do total dos vinhos do país. Num registo de qualidade, tínhamos o Mouchão, o José de Sousa, alguma coisa em Barrancos e pouco mais. No ano passado, o Alentejo produziu mais de 40% dos vinhos do país. Quem funcionou como âncora da modernidade do vinho alentejano foi o Esporão. Do vinho e do azeite.
Quando comprou a herdade, não imaginava no que ela se iria transformar.
Não, de facto. Até porque o processo de implantação e desenvolvimento do projecto foi interrompido no 11 de Março de 1975. A herdade não foi ocupada, foi nacionalizada por decreto porque eu, presidente da Finagra – dona da Herdade do Esporão – estava preso, com suspeita de fazer parte de uma associação de malfeitores. Foi assim que o Otelo determinou.
Nessa altura já estava em Caxias?
Pois estava. Foram buscar-me e aos outros administradores à sede do BES no dia 11 de Março. Ao fim de três dias, por intervenção do Almirante Rosa Coutinho, libertaram-me. Eu e outros dois ou três do BES, entre eles o Jorge de Mello. Uns dias depois fiquei a saber pelo Rosa Coutinho que ia ser preso de novo. Ora, achei isso pouco razoável, mas não fugi. De maneira que lá me foram buscar a casa, perguntando onde estavam as armas e tal. Preparei uma malinha e lá fui. Meteram-me numa das celas e dormi tranquilamente até às 10 da manhã. E foi durante esta segunda estada em Caxias – com a malta do Palma Inácio a mandar naquilo – que fiquei a saber da nacionalização do Esporão.
E quando regressa a herdade à Finagra?
Foi só em 1978, com a lei Barreto, depois de negociações muito difíceis. Nessa altura eu estava no Brasil e era o Joaquim Bandeira, sócio e homem do sector, quem me ia informando das coisas por telefone. Uma das condições do acordo era que o Esporão continuasse a entregar as uvas à Adega Cooperativa de Reguengos de Monsaraz, com as quais, entretanto, já tinha criado a marca Reserva dos Sócios.
Não poderiam produzir vinho?
Não, mas nós investimos no Esporão para fazer vinho e não para produzir uvas para outros. Eu disse ao Joaquim que avaliasse quanto é que seria a multa para não entregar as uvas à cooperativa porque, com as […]