Nota: Ao longo do texto irá ser usado o termo “orgânico” e “biológico” de forma livre. Ambos os termos são sinónimos.
Bem…suponho que este vai ser um dos temas mais difíceis de digerir pelos seguidores do blog. Antes de começarmos deixo uma mensagem importante: a agricultura biológica tem coisas boas. Mas para falarmos das coisas boas vamos ter que espancar este tema bem espancado e desfazer os mitos que assombram esta área. O tema será tão bem espancado que temos direito a duas partes. Nesta primeira parte, vamos abordar a origem histórica da agricultura biológica, os pesticidas e as supostas vantagens em termos de saúde.
Comecemos com a origem histórica…
Apresento-vos o Sr. Rudolf Steiner
Rudolf Joseph Lorenz Steiner (1861-1925) foi um filósofo austríaco, reformador social, arquiteto e esoterista (promotor do pensamento mágico, do oculto e da superstição). No início do século XX, fundou um movimento espiritual esotérico, a antroposofia, com raízes na filosofia idealista alemã e na teosofia. Esta filosofia postula “a existência de um mundo espiritual objetivo, intelectualmente compreensível, acessível à experiência humana através do desenvolvimento interior.” Portanto, algo mais em contacto com a religião do que com a ciência.
Após a Primeira Guerra Mundial, Steiner trabalhou em várias frentes e ajudou a construir projetos baseados nas suas crenças antroposóficas, incluindo a medicina antroposófica, a educação Waldorf e a agricultura biodinâmica.
A medicina antroposófica é uma forma de medicina alternativa. Os praticantes destas terapias alternativas utilizam várias técnicas de tratamento como massagem, exercícios e “medicamentos” baseados nos conceitos da homeopatia e da fitoterapia como, por exemplo, o Viscum album para o tratamento do cancro – sem eficácia comprovada. Como uma boa medicina alternativa, os seus praticantes (ou pelo menos alguns deles), opõem-se à vacinação. E também não fugindo à regra do mundo alternativo promovem conceitos tão absurdos que chega a ser cómico. Coisas como afirmar que o coração não bombeia sangue, mas que o sangue se impulsiona a si próprio. Que as “vidas passadas” podem influenciar a saúde e a doença e que o curso de uma doença está sujeito ao destino cármico. Escusado será dizer que nada disto tem sustentação na realidade.
A educação Waldorf (também conhecida como educação Steiner) é, mais uma vez, uma educação baseada no conceito filosófico da antroposofia. Apesar do modelo Waldorf ter aspectos positivos como a promoção do “pensamento crítico” e utilização da imaginação no sentido da promoção da criatividade, é difícil passar por cima de todas as coisas estranhas que promove. Segundo este modelo é possível classificar as crianças segundo os quatro humores: sanguíneo, melancólico, colérico e fleumático. Steiner acreditava que surtos de doenças na infância eram espiritualmente benéficos. Logo, abre a porta à não vacinação das crianças o que torna este conceito bastante atraente para os seguidores dos movimentos anti-vacinas. Na Califórnia, as escolas Waldorf chegaram a ter taxas de vacinação de apenas 8%.
E finalmente temos a agricultura biodinâmica, o tema que mais nos interessa neste artigo. A agricultura biodinâmica foi o primeiro tipo de agricultura orgânica/biológica contemporânea (sim…é verdade):
“A agricultura foi praticada por milhares de anos sem o uso de produtos químicos artificiais. Fertilizantes artificiais foram criados em meados do século XIX. Esses primeiros fertilizantes eram baratos, poderosos e fáceis de transportar a granel. Avanços semelhantes ocorreram relativamente aos pesticidas sintéticos (…). Estas novas técnicas agrícolas, apesar de benéficas a curto prazo, tiveram sérios efeitos colaterais a longo prazo como a compactação do solo, erosão e declínio na fertilidade total do solo além de preocupações com a saúde sobre os produtos sintéticos que entravam na cadeia alimentar. No final do século XIX e início do século XX, os cientistas da área de biologia do solo começaram a procurar maneiras de remediar esses efeitos colaterais, tentando manter a produção.
A agricultura biodinâmica foi o primeiro sistema moderno de agricultura a concentrar-se exclusivamente em métodos orgânicos. O seu desenvolvimento começou em 1924 com uma série de oito palestras sobre agricultura dadas por Rudolf Steiner. Essas palestras foram a primeira apresentação conhecida do que mais tarde veio a ser conhecido como agricultura orgânica.”
De facto havia preocupações legítimas relativamente às práticas agrícolas da época relacionadas com a utilização de fertilizantes e pesticidas sintéticos tendo surgido a necessidade de procurar soluções alternativas, eventualmente com menor impacto ambiental. O problema é que a procura dessas soluções não foi propriamente baseada em ciência ou em observações sujeitas ao escrutínio interpares. Steiner, aplicando o seu conceito de antroposofia à agricultura, propôs influenciar a vida orgânica através de forças cósmicas e terrestres, recorrendo a nove preparações que supostamente “harmonizariam” o solo:
“As preparações 500 e 501 são feitas embalando-se estrume de vaca ou sílica, respectivamente, em chifres de vaca e enterrando-os por um número de meses antes do uso. Steiner acreditava que os chifres de vaca, em virtude da sua forma, funcionavam como antenas para receber e concentrar as forças cósmicas, transferindo-as para os materiais internos. Após a exumação, o conteúdo era diluído com uma quantidade não especificada de água para criar uma solução homeopática que, quando aplicada ao solo (Preparação 500) ou culturas (Preparação 501), influenciava o crescimento da raiz ou da folha.
Seis outros compostos (Preparações 502–507) são extratos de várias plantas embaladas em crânios, órgãos de animais (como bexigas de veado, peritoneu de vaca e intestinos), turfa ou esterco, onde são envelhecidos antes de serem diluídos e aplicados em composto. Steiner acreditava que os elementos químicos contidos nessas preparações eram portadores de forças terrestres e cósmicas. Transmitiriam essas forças às plantações e, portanto, aos humanos que as consumiam.
Steiner não acreditava que as plantas sofressem de doenças, mas apenas pareciam doentes quando as ‘influências da lua’ no solo se tornavam muito fortes; no entanto, recomendou uma infusão fraca de cavalinha seca (Equisetum arvense) para o tratamento de doenças do solo e de fungos nas culturas (Preparação 508). Para outras pragas, Steiner recomendava “cinzas de praga”, uma prática pela qual as espécies de insetos, ervas daninhas ou roedores culpados pela praga eram queimados. As cinzas eram então espalhadas pelos campos para impedir a infestação futura. Talvez Steiner acreditasse que essas preparações e práticas tornariam as culturas mais resistentes a pragas e doenças, reduzindo a necessidade de pesticidas. Infelizmente, ele não deu nenhuma explicação racional para a maioria desses processos.
No seu artigo, Kirchmann (1994) afirma que, como Steiner desenvolveu sua filosofia biodinâmica através da meditação e da clarividência, ele rejeitava a investigação científica porque os seus métodos eram ‘verdadeiros e corretos por si mesmos’.”
Cheira fortemente a tretologia alternativa, certo? Mas não fica por aqui. A agricultura biodinâmica usa conceitos de alquimia, geo-acupuntura e as plantações são planeadas de acordo com os ciclos lunares e os mapas astrológicos. Mas felizmente a agricultura biológica/orgânica evoluiu e separou-se desses conceitos esotéricos. E a agricultura biodinâmica também evoluiu paralelamente, adotando alguns comportamentos que no passado não eram promovidos:
Ao longo do último século, a agricultura biodinâmica evoluiu para incluir muitas práticas agrícolas não convencionais como rotação de culturas, policultura e culturas de cobertura, que têm benefícios demonstráveis no uso da terra e na produção agrícola:
Os ensinamentos originais de Steiner não incluíam essas metodologias, que, juntamente com outras práticas, são a base da agricultura orgânica conforme proposto por Lord Northborne em 1942. De fato, os padrões de certificação biodinâmica e aqueles para agricultura orgânica são quase idênticos, exceto pela inclusão necessária das nove preparações de Steiner no primeiro.
Então, o que caracteriza hoje em dia a agricultura biológica?
Podemos descrever a agricultura biológica da seguinte forma:
“A agricultura biológica é um sistema agrícola alternativo que surgiu no início do século XX em reação a práticas agrícolas em rápida mudança. (…) Baseia-se em fertilizantes de origem orgânica como adubo orgânico, adubo verde e farinha de ossos e enfatiza técnicas como a rotação de culturas e o plantio de espécies sinérgicas. O controlo biológico de pragas, culturas mistas e o fomento de predadores de insetos são encorajados.
Em geral, os padrões orgânicos são projetados para permitir o uso de substâncias que ocorrem naturalmente, ao mesmo tempo que proíbem ou limitam estritamente as substâncias sintéticas. Por exemplo, pesticidas que ocorrem naturalmente como a piretrina e a rotenona são permitidos, enquanto fertilizantes e pesticidas sintéticos são geralmente proibidos. Substâncias sintéticas que são permitidas incluem, por exemplo, sulfato de cobre, enxofre elementar e ivermectina. Organismos geneticamente modificados, nanomateriais, lodo de esgoto humano, reguladores de crescimento de plantas, hormonas e uso de antibióticos na pecuária são proibidos.
(…) Os métodos agrícolas orgânicos são regulados internacionalmente e legalmente impostos por muitas nações, com base em grande parte nos padrões estabelecidos pela Federação Internacional de Movimentos da Agricultura Orgânica (IFOAM), uma organização guarda-chuva para as organizações de agricultura orgânica estabelecida em 1972.”
Vamos lá descascar isto…Podemos dizer que a agricultura biológica tem boas intenções. Mas quisermos ajudar o ambiente, minimizar o impacto da agricultura nos ecossistemas circundantes e dos malditos pesticidas na saúde das pessoas devemos seguir a evidência científica produzida que indique qual o melhor caminho, certo? E não é bem isso que a agricultura biológica faz.
No fundo, a agricultura biológica tem uma filosofia de base que se esforça por manter mesmo que vá contra os interesses do ambiente e da saúde das pessoas, baseada na falácia naturalista e na quimiofobia, com o intuito de nos dizer que devemos dar opção a produtos “naturais” em detrimento dos sintéticos. Depois tem um política contra os transgénicos, apesar de haver um consenso alargado que os transgénicos não só são seguros como mais favoráveis para o ambiente e para a saúde (irei fazer um artigo só sobre esta matéria).
Tendo este conhecimento de antemão, vamos começar a abordar os mitos sobre a agricultura biológica.
A agricultura biológica não usa pesticidas
Este será um dos principais mitos e engodos de quem prefere os alimentos biológicos aos produzidos pela agricultura convencional. Os alimentos biológicos supostamente não estarão contaminados com os malditos “químicos”, não estarão cheios de pesticidas que provocam doenças. Um questionário realizado nos EUA referia que 95% das pessoas compravam estes produtos para evitar pesticidas e aditivos alimentares. Em Portugal, 80% das pessoas acha que a agricultura orgânica/biológica não utiliza pesticidas. Mas isso está muito longe de ser verdade.
Primeiro, vamos esclarecer o que é um pesticida. Um pesticida é um químico que se destina a matar um organismo, seja feito pelo Homem ou natural. E a Mãe Natureza vive em constante guerra biológica. Bactérias, fungos, plantas, insectos e animais produzem constantemente pesticidas para matar outras espécies. Bactérias e fungos produzem antibióticos naturais para matar outras bactérias. As plantas produzem pesticidas como a cafeína e a nicotina (sim, são pesticidas), para matar insetos que se alimentam delas. E quando come plantas, adivinhe…está a consumir pesticidas produzidos pelas próprias plantas. Só o repolho produz cerca de 49 pesticidas. Estima-se que o Homem consuma cerca de 5.000 a 10.000 pesticidas naturais todos os dias. Ao contrário do que as pessoas pensam, 99.9% dos pesticidas que ingeridos são de origem natural. A quantidade de pesticidas sintéticos ingeridos é residual.
Depois, também ao contrário do que as pessoas pensam, a agricultura biológica utiliza vários pesticidas (lista dos produtos permitidos nos EUA e na União Europeia). Mas, pasme-se, não utiliza apenas pesticidas naturais mas também sintéticos. Até podemos dizer que as coisas não são muito claras nesta área:
“Por exemplo, um pesticida quimicamente orgânico, produzido naturalmente no Quénia, o piretro, é declarado “orgânico” mesmo que dizime as abelhas. Mas um pesticida quimicamente orgânico nativo da América do Norte, o sulfato de nicotina, não é considerado “orgânico”. Um fungicida produzido sinteticamente, Captan, é declarado não “orgânico”. Mas o sulfato de cobre, fungicida produzido sinteticamente é declarado “orgânico”.
O Programa Nacional de Orgânicos do USDA, que começou com um Ato do Congresso em 1990, articula a falácia dessa maneira:
‘Como regra geral, todas as substâncias naturais (não sintéticas) são permitidas na produção orgânica e todas as substâncias sintéticas são proibidas. A Lista Nacional de Substâncias Não Sintéticas e Sintéticas Permitidas contém, numa secção dos regulamentos, as exceções específicas à regra.’
Por outras palavras, as substâncias naturais são aceitáveis, a menos que não sejam; e substâncias sintéticas não são aceitáveis, a menos que sejam.”
Racionalizam estas “exceções” dizendo que a utilização de pesticidas sintéticos será autorizada na ausência de soluções naturais. Mas pessoalmente o que me interessa (e ao leitor também deveria interessar), não é se o pesticida é natural ou sintético mas qual a toxicidade do mesmo. Num mundo racional, os agricultores poderiam utilizar as substâncias naturais ou sintéticas que garantissem o melhor resultado possível, certo? Mas por alguma razão, as pessoas presumem que os pesticidas que ocorrem naturalmente são de alguma forma melhores para a saúde e para o meio ambiente do que aqueles criados pelo Homem. À medida que mais investigação é feita sobre a toxicidade destas substâncias naturais, mais se verifica que isso não é verdade. Alguns pesticidas naturais demonstraram ser muito piores para a saúde e o ambiente.
Deixo dois quadros fabulosos feitos pela Thoughtscapism. O primeiro quadro (à esquerda) avalia a toxicidade aguda de vários produtos, incluindo pesticidas orgânicos (a verde) e convencionais (a vermelho). Essa medição é realizada recorrendo ao LD50, que nos indica a dose necessária para que 50% dos animais expostos a uma determinada dose morram. O segundo quadro (à direita) apresenta a toxicidade crónica de vários produtos incluindo, mais uma vez, pesticidas naturais e sintéticos. Essa toxicidade crónica é medida pelo “Nível mais baixo com efeitos adversos observáveis” (LOAEL) e o “Nível sem efeitos adversos observáveis” (NOAEL):
Conclusão: tantos os pesticidas orgânicos como convencionais são tóxicos a partir de uma determinada dose. Alguns pesticidas orgânicos apresentam uma toxicidade aguda e crónica superior aos pesticidas convencionais. Não é ser natural que torna o pesticida seguro. Aproveitem para verificar a toxicidade do glifosato e compará-lo com as outras opções.
O engodo não se fica por aqui. O caro leitor vai comprar um produto biológico com a suposta garantia que não tem os malvados pesticidas sintéticos. Mas na realidade, não lhe poderão dar essa garantia. Um estudo no Canadá detetou contaminação com pesticidas utilizados na agricultura convencional em cerca de metade dos produtos biológicos. Nos Estados Unidos, um relatório de 2014 encontrou resíduos de pesticidas convencionais em 21% das amostras de produtos orgânicos. Pior…os testes de deteção realizados não tinham a capacidade de detetar vários dos pesticidas mais comummente usados na agricultura orgânica como o enxofre, compostos de cobre, óleos minerais ou Bt. O que dá uma ideia errada do nível de pesticidas destes alimentos. E essa falha é frequente neste tipo de estudos, que não costumam abranger de forma sistemática e alargada os pesticidas utilizados na agricultura orgânica.
Ou seja, o caro leitor não sabe exatamente se os produtos biológicos têm de facto pesticidas ou quais as doses dos pesticidas utilizados habitualmente nos produtos orgânicos. E isso sim, é importante saber.
“Mas eu compro os meus produtos ao meu vizinho do lado e ele diz que não usa pesticidas”
Isso é porque está a confundir agricultura com jardinagem…sim, a jardinagem também pode ser comercial. O seu vizinho do lado pode produzir produtos agrícolas para venda, mas isso não faz dele um agricultor. Infelizmente para ter escala é necessário recorrer ao uso de pesticidas e fertilizantes. Mais…na agricultura orgânica, a utilização de pesticidas poderá ser numa quantidade superior à agricultura convencional. Isto porque os pesticidas orgânicos tendem a ser menos eficazes e a serem utilizados em doses superiores para garantir o mesmo resultado na eliminação de pragas.
O problema não se fica pelos pesticidas
Mesmo que não haja qualquer tipo de contaminação por pesticidas, os produtos orgânicos parecem ser mais propensos à contaminação bacteriana. Um estudo detetou duas vezes maior contaminação por Salmonella em produtos biológicos do que em alimentos produzidos pelos métodos convencionais. O mesmo parece acontecer relativamente à bactéria E. Coli, tendo sido detetada contaminação em cerca de 10% dos produtos orgânicos em comparação com 2% dos produtos convencionais. Este último estudo também detetou Salmonella apenas em produtos orgânicos, apesar de baixa taxa de pravalência. A razão para a contaminação bacteriana mais frequente é provavelmente o uso de estrume ao invés de fertilizantes artificiais, já que muitas bactérias são disseminadas por contaminação fecal. A agricultura convencional geralmente também usa estrume, mas usam irradiação e agentes antibacterianos para limitar essa contaminação. Sem eles, os alimentos orgânicos correm um risco maior de contaminação bacteriana (artigo, artigo). No entanto, estes achados não têm sido consistentes ao longo de diferentes estudos, havendo situações em que não há diferenças significativas.
Agora vamos ver como se manipula a opinião pública…
Aproveitando o desconhecimento das pessoas em três frentes – é indiferente se o pesticida é sintético ou natural para avaliar a toxicidade, a agricultura orgânica/biológica usa pesticidas e não ser habitual estudar de forma extensa e sistemática o nível de pesticidas “naturais” presentes nos alimentos orgânicos – é habitual aparecerem este tipo de notícias:
“Os morangos são a fruta com mais pesticidas (e a seguir vêm os espinafres): Um relatório divulgado a 10 de abril diz que 70% das frutas e vegetais contêm cerca de 230 pesticidas diferentes. (…) A melhor forma para contornar este problema passa por comprar frutas e legumes biológicos. Mas, “não o podendo fazer, é fundamental lavá-los muito bem com água corrente e, se possível eliminando a casca, que é a zona mais contaminada. No caso dos morangos e de outros produtos em que isto não seja possível — e que podem estar contaminados na polpa — o ideal é mesmo comprar a versão orgânica.”
Portanto, depois de tudo o que leu, parece fácil compreender a completa aldrabice que esta notícia representa, certo? A agricultura orgânica tem pesticidas. Este “estudo” apenas avaliou de forma deliberada os alimentos produzidos pela agricultura convencional. Ter 230 pesticidas não dá qualquer tipo de informação relevante já que é a dose de pesticidas encontrados na amostra que nos interessa.
Agora vamos ver quem fez o relatório e com que objetivos…O relatório é feito pela Environmental Working Group, que é um grupo ativista promotor de pseudociência ou má ciência (parafraseando):
“O EWG tem um histórico de promover “ciência” obscura como se de factos sólidos se tratasse. O seu principal talento não é a investigação, é enganar os jornalistas para transcreverem credulamente as suas “descobertas”. Uma organização sem fins lucrativos que aprendeu a transformar o pânico público num fluxo de doações pesadas. O EWG não tem nenhum problema em causar revolta e preocupações desnecessárias, provocando danos incalculáveis a setores honestos. A hipérbole, parece, é um grande negócio – no ano passado, o EWG arrecadou mais de 6 milhões de dólares. (…)
Na realidade, o EWG é um caldeirão onde algumas das piores campanhas de difamação recorrendo à pseudociência são elaboradas. Ataca a desconfiança do público em relação ao jargão científico polissilábico – e a ignorância dos repórteres sobre o mesmo – para fazer parecer que itens quotidianos com nomes complicados são extremamente perigosos. O plano de jogo do EWG é simples. Realiza análises “científicas” destinadas a fazer com que o público se preocupe com quantidades extremamente pequenas de “toxinas” nos itens do dia-a-dia. Utiliza frases assustadoras como “risco de cancro” e “toxicidade para o sistema nervoso”, o que é chamativo para jornalistas ambientais, muitos dos quais lêem os relatórios EWG sem sentido crítico ou sem verificar os factos. (…)
Se o EWG fosse levado a sério, a América viraria as costas a tecnologias que permitem que as plantações agrícolas se tornem mais produtivas, a produtos que previnem cancro e a tecnologias que mantêm os alimentos frescos e seguros.”
Espero que o leitor compreenda que vivemos num mundo de desinformação. Esclarecê-lo é a última das preocupações da maioria destas “organizações sem fins lucrativos”. Mesmo a Quercus, a ONG ambiental portuguesa mais conhecida, é grande promotora do medo e de pseudociência. Gente que não sabe nada de ciência e recusa saber. Gente que promove, tal e qual a agricultura biológica, o apelo ao natural e a quimiofobia.
O que nos interessa, é isto…
O que nos deve “preocupar” é a análise objetiva das quantidades/doses de pesticidas presentes nos alimentos, sejam eles produzidos pela agricultura convencional ou biológica. Todos os pesticidas utilizados por ambos os métodos agrícolas deviam ser sujeitos a controlo anual. No entanto, como explicado, o controlo é muito mais apertado nesse aspeto na agricultura convencional. E os números podem deixar-nos descansados. O relatório de 2015 da FDA, que monitoriza a utillização de pesticidas na agricultura convencional diz o seguinte:
“A FDA descobriu que mais de 98% dos alimentos nacionais e 90% dos alimentos importados estavam em conformidade com os padrões federais; não foram encontrados resíduos de agrotóxicos em 49,8% das amostras domésticas e 56,8% das amostras de alimentos humanos importados. Encontramos resíduos em violação dos padrões federais (resíduos acima da tolerância ou resíduos para os quais não foi estabelecida tolerância) em menos de 2% das amostras domésticas e menos de 10% das amostras importadas.
No ano fiscal de 2015, a FDA também analisou 417 amostras de alimentos para animais (215 domésticos e 202 importados) para pesticidas. A Agência não encontrou resíduos de pesticidas em 51,6% das amostras domésticas e 57,9% das de importação de alimentos de origem animal. (…) Menos de 3% das amostras de alimentos para animais (quatro domésticas e oito importadas) continham resíduos químicos de pesticidas que violaram os padrões federais.”
Os valores são semelhantes no Relatório Europeu de 2015, com menos de 2% das amostras com níveis de pesticidas superiores ao recomendado. Isto é o importante. Os níveis de pesticidas estão dentro dos intervalos de segurança estabelecidos na larga maioria dos produtos comercializados. Neste relatório também foi realizada análise dos produtos orgânicos, com 99.3% a cumprir os limites de pesticidas impostos legalmente. No entanto, como explicado, neste caso não há uma análise extensa aos habituais pesticidas utilizados na agricultura orgânica.
Mais relevante é uma revisão publicada em 2016 sobre a segurança alimentar dos alimentos biológicos versus alimentos convencionais. Surpresa, surpresa:
“As alegações de que os alimentos orgânicos são mais seguros do que os alimentos convencionais ainda não foram apoiadas por pesquisas científicas definitivas e, portanto, pode-se concluir que o preço premium dos alimentos orgânicos só pode ser justificável por outros fatores além da segurança alimentar.”
Os alimentos biológicos são melhores para a saúde
Hoje em dia não é anormal os hipermercados e encontrarmos uma secção de “produtos saudáveis”. Esta área tem muitas coisas giras mas o grosso são os “produtos biológicos”, o que transmite a ideia ao cliente que os produtos biológicos são melhores para a saúde. Ideia que é repetida constantemente pelo marketing das empresas produtoras de produtos biológicos. Mas vamos ver se isso é verdade.
Primeiro, convém esclarecer uma coisa. Existem estudos que se dedicam a verificar se existem diferenças nutricionais entre os alimentos biológicos e os produzidos pela agricultura convencional e existem estudos que tentam perceber se os alimentos biológicos têm algum impacto em termos de saúde. Tendo este ponto em consideração, vamos ver a evidência.
Começamos com uma revisão de 2002, que avaliou as diferenças nutricionais entre produtos orgânicos e convencionais:
“Com a possível exceção do teor de nitrato, não há evidências de que alimentos orgânicos e convencionais apresentem diferenças nas concentrações dos vários nutrientes.”
Ter mais nitrato não será propriamente uma vantagem nutricional relevante. Muito menos que justifique a diferença de preço entre os alimentos orgânicos e convencionais. Passamos para uma revisão da evidência de 2009, que conclui:
“Numa análise que incluiu apenas estudos de qualidade satisfatória, as culturas produzidas por métodos convencionais tiveram um conteúdo significativamente maior de nitrogénio e as culturas produzidas por métodos orgânicos tiveram um conteúdo significativamente maior de fósforo e maior acidez titulável. Nenhuma diferença foi detectada para as restantes 8 das 11 categorias de nutrientes analisadas. A análise da base de dados mais limitada sobre produtos pecuários não encontrou diferenças no conteúdo de nutrientes entre produtos pecuários produzidos por métodos orgânicos ou convencionais.”
Portanto, nem produtos vegetais nem produtos animais apresentam diferenças nutricionais relevantes. Em 2010, os mesmos autores fizeram uma revisão sistemática que se focou em possíveis diferenças em termos de saúde. As conclusões são semelhantes:
“A partir de uma revisão sistemática da literatura atualmente disponível, faltam evidências de efeitos na saúde relacionados com o consumo de alimentos produzidos de forma orgânica.”
E em 2012 foi realizada uma das revisões mais completas nesta área, que conclui:
“Depois de analisar os dados, os investigadores descobriram diferenças pouco significativas nos benefícios para a saúde entre alimentos orgânicos e convencionais. Não foram observadas diferenças consistentes no conteúdo vitamínico dos produtos orgânicos e apenas um nutriente – fósforo – estava em concentrações significativamente maiores em produtos orgânicos versus cultivados de forma convencional (e como poucas pessoas têm deficiência de fósforo, isso tem pouca relevância clínica).”
Em 2013 surge uma nova revisão sobre os vegetais orgânicos versus vegetais convencionais. Mais uma vez, sem diferenças nutricionais ou impacto na saúde. Em 2014 é publicada uma revisão sistemática e meta-análise sugerindo que os alimentos orgânicos são mais ricos em antioxidantes e com menos teor de cádmio (um metal pesado que poderá ter implicações para a saúde). O problema é que esta revisão, de autores com claras inclinações e interesses na área da agricultura orgânica, tem vários problemas metodológicos importantes (artigo, artigo e artigo):
Usaram muitos artigos, o que é bom se realmente existe um grande conhecimento e os artigos são rigorosos. Mas mesmo na questão toxicológica mais controversa, a EPA acabaria por desqualificá-los todos com exceção de uma dúzia de artigos devido a falta de dados apresentados ou preocupações metodológicas. Na revisão não examinam os dados dos estudos ao pormenor e, é claro, 343 artigos tornam-se um problema e não a solução quando a metodologia é fraca.
A meta-análise, como todos com conhecimento em estatística sabem, pode aumentar a força das revisões sistemáticas quando feita corretamente. Mas facilmente sofre de vieses importantes a não ser que os investigadores estejam realmente interessados em controlar os critérios de elegibilidade e a qualidade metodológica. Sem critérios de eligibilidade bem definidos é fácil encontrar chegar a qualquer conclusão que se pretenda.”
Para além disso, um dos autores do estudo é um ativista anti-transgénicos conhecido, com um histórico de reivindicações direcionadas por uma agenda específica e realização de estudos científicos mal desenhados.
Em 2016 foram publicadas duas revisões sistemáticas e meta-análises dos mesmo autores. Uma com incidência no leite e outro na carne, comparando as diferenças nutricionais entre os produtos produzidos de forma orgânica e convencional. Concluem que os níveis de ácidos gordos poliinsaturados (PUFA) e ácidos gordos ómega-3 são mais altos nas versões orgânicas de ambos. Mas uma análise mais detalhada da evidência deixa muito a desejar. Primeiro, a diferença encontrada não tem propriamente que ver com a produção ser biológica ou convencional. Parece estar relacionado com a dicotomia dos animais serem alimentados com erva/capim ou com grão. Além disso, ambos os estudos sofrem de problemas metodológicos importantes. Mimetizando o estudo anterior que reportou mais antioxidantes nos alimentos orgânicos, não houve grande critério nos estudos incluídos na meta-análise o que o dá origem ao famoso GIGO (garbage in, garbage out).
Mas mesmo supondo que ambas as meta-análises são perfeitas encontramos aqui outro engodo habitualmente usado pela indústria farmacêutica. A utilização de valores relativos em vez de valores absolutos:
“Para o leite, o estudo descobriu que os PUFAs eram 7% superior nos orgânicos (alimentados com erva/capim), enquanto os ómega-3 eram 56% mais altos. Para a carne estes números foram 23% e 47%, respetivamente. Estes números parecem impressionantes (…) mas podem enganar.
Falando especificamente do ómega-3, que apresentou valores relativos mais altos:
A questão é que nem o leite nem a carne vermelha são fontes significativas de ácidos gordos ómega-3, portanto, mesmo um aumento relativo de 50% nessa pequena quantidade de nutrientes provavelmente tem poucas implicações na saúde. Por exemplo, se beber meio litro de leite convencional todos os dias, isso forneceria 11% da ingestão diária recomendada de ómega-3, enquanto que beber leite orgânico forneceria 16%. Se bebe leite magro o efeito é ainda menor. Simplificando, não vai atingir a dose diária de ómega-3 consumindo leite.
Os números são ainda piores para a carne. A carne vermelha é rica em gordura saturada. O efeito total do consumo de gorduras no seu perfil de ácidos gordos será negativo, mesmo que a carne seja de origem orgânica. É melhor substituir a carne vermelha por peixe ou frango.”
Em 2017, duas revisões (artigo e artigo) chegam ambas à mesma conclusão. Pode haver algumas diferenças nutricionais entre os alimentos biológicos e convencionais, mas essas diferenças parecem ser insignificantes e sem impacto importante na saúde. No entanto, também é importante referir que existe falta de coortes de longo prazo que indiquem de forma mais detalhada se há ou não impacto em áreas importantes como o cancro e doenças cardiovasculares.
Sobre o perfil nutricional dos alimentos, também convém salientar que as diferenças nutricionais variam de acordo com vários fatores como fatores regionais locais, variações nas estações do ano e precipitação, amadurecimento dos alimentos quando colhidos e época da colheita. Os valores nutricionais das culturas podem variar entre 100% e quase 200% (o que deve ser tido em conta quando as diferenças relatadas entre culturas convencionais e biológicas se situam entre 6 e 69%). Portanto, há coisas que têm muito mais impacto no perfil nutricional dos alimentos do que a forma de produção.
“Mas a comida biológica sabe melhor”
A questão do sabor dos alimentos é um tema bastante controverso.
O sabor da comida parece ser mais influenciado pelo seu cérebro do que pelo alimento em si. Se as expectativas forem altas relativamente ao alimento, irá dar a impressão que é mais saboroso. Basta colocar o rótulo “biológico” em produtos idênticos para as pessoas terem uma percepção diferente do mesmo. Produtos idênticos, neste caso biscoitos, batatas fritas e iogurte com rótulo orgânico foram vistos como tendo menos calorias, menos gordura e mais fibra. Os biscoitos e batatas fritas foram classificados como sendo mais nutritivos pelos consumidores. Quanto ao sabor, o iogurte rotulado como orgânico era considerado mais saboroso assim como as batatas fritas, mas os participantes preferiam os biscoitos comuns. Este estudo também reportou que as pessoas estavam dispostas a pagar mais pelo produto rotulado como biológico (relembro…exatamente o mesmo produto). Este estudo não é caso único. Somos presas fáceis do marketing organizado.
Na verdade, quando fazemos testes cegos, as pessoas habitualmente não conseguem distinguir se os alimentos que estão a comer são convencionais ou orgânicos. Neste estudo não foi possível diferenciar o sabor dos vegetais de acordo com a sua origem excepto no caso do tomate convencional, considerado mais saboroso que o orgânico. Neste estudo que avaliou o sumo de laranja e o leite, o sumo de laranja orgânico foi considerado mais saboroso mas não houve diferenças relativamente ao leite. Mas depois neste estudo o sumo de laranja convencional já foi considerado mais saboroso, assim como as mangas. Pelo contrário, as bananas orgânicas tiveram melhor classificação.
Estudos sobre tomates, batatas, cogumelos e cenouras não encontraram diferenças significativas. Um estudo sueco sobre a avaliação sensorial de cenouras orgânicas versus convencionais, ao longo de dois anos, mostraram que as cenouras convencionais tiveram melhores resultados para o sabor, doçura e crocância, enquanto as cenouras orgânicas tiveram maior pontuação quanto ao sabor amargo, dureza e gosto pós-pronunciado. Mas os resultados não eram muito diferentes entre si.
Uma revisão do tema refere os resultados são inconsistentes no que diz respeito ao sabor dos alimentos orgânicos em comparação com os convencionais. No global não parece existir diferenças estatisticamente significativas entre as propriedades sensoriais de frutas e hortaliças orgânicas e convencionais. Eventualmente, se for uma pessoa treinada, será capaz de distinguir frango de origem orgânica do frango criado pelos métodos convencionais. Mas o comum mortal não parece perceber a diferença.
Conclusão
Depois deste longo artigo, acho que podemos concluir que a agricultura orgânica/biológica tem origens dúbias, baseadas no conceito do apelo ao natural e na quimiofobia e não propriamente na ciência que dita o que é melhor para a saúde e para o ambiente. O leitor também percebeu que a agricultura biológica também utiliza pesticidas, alguns mais tóxicos que os utilizados na agricultura convencional. Mas como consumidor, a sua preocupação deverá ser com as doses de pesticidas existentes na comida e não com a sua origem…não interessa se é natural ou sintético.
Também podemos concluir que não existe uma clara vantagem em termos nutritivos quando comparamos alimentos orgânicos com os convencionais. Não há um impacto demonstrável na saúde comendo alimentos orgânicos. O que há é um impacto importante na carteira. E se acha que os alimentos biológicos são mais saborosos…pense novamente. Os resultados são inconsistentes e muitas vezes beneficiam os alimentos convencionais.
No próximo artigo, iremos falar do impacto ambiental da agricultura orgânica versus convencional…e as surpresas vão continuar.
Fonte: Scimed