Na casa onde nasci havia uma adega que ficava debaixo da casa, logo à entrada, após a “porta da carreira”. No outro lado ficavam os antigos “aidos” do gado e depois havia o terreiro debaixo de uma ramada. Saí dessa casa com 6 anos mas ainda me lembro da ramada, da adega e do vinho doce a sair do lagar.
Com 6 anos mudamo-nos para a nova casa, porque não havia espaço para ter mais de 12 vacas na “casa velha” e as pipas, os toneis, a espremedeira e tudo o resto veio para a adega da casa nova. Um “tonel” é uma pipa grande, pensava que valia por 3 pipas ou mais, mas leio agora na Wikipédia que equivale a duas pipas de 500 litros. Os toneis eram grandes o suficiente para eu, criança com 6 anos, passar na porta de entrada e andar lá por dentro, em pé, a limpar o sarro.
O vinho era colhido nas ramadas que ocupavam as bordaduras de quase todos os campos e às vezes dos caminhos. A ramada, estrutura de arames amarrados em traves de madeira suportados em esteios de granito, era a forma de condução das videiras tradicional aqui em Vila do Conde, no Baixo Minho / Douro Litoral. Mais para o interior usava-se a “vinha de enforcado”, suportada pelas árvores entre os campos, noutras zonas a vinha cresce junto ao solo.
Por baixo das ramadas plantava-se a “batata do cedo” ou alguma cultura que aproveitava a luz disponível no inverno, enquanto não cresciam as folhas das videiras, que no verão davam sombra e aroma aos caminhos e terreiros das casas de lavoura. Numa zona de solo fértil mas escasso, colocar a vinha em ramada foi forma de aproveitar todo o espaço disponível, uma espécie de “agricultura vertical” com rés do chão e primeiro andar.
Já na escola agrícola, com 15 anos, visitei a estação de viticultura Amândio Galhano em Arcos de Valdevez e vi os sistemas de condução em cordão simples ou cordão duplo que permitem a mecanização das podas e da vindima.
Nas ramadas, tudo era e é manual: a vindima, a poda e os tratamentos. A poda era geralmente feita nos dias soalheiros de janeiro ou fevereiro, mas a vindima era uma carga de trabalho que coincidia com a colheita do milho silagem. Debaixo das ramadas era difícil passar com o trator. Uma das opções adotadas foi tirar os esteios do lado de dentro do campo e pendurar a ramada apenas nos esteios que ficam na bordadura. Outra opção, que o meu pai e outros vizinhos adotaram foi “podar pelo pé”, ou seja, cortar as videiras definitivamente. Sem saudades.
Não foi uma lei que mandou cortar nem creio que fosse por causa do subsídio para arrancar as vinhas velhas. No nosso caso, foi uma questão de trabalho, de falta de mão de obra para os trabalhos manuais da vinha e também pela limitada qualidade do vinho à beira-mar. Muitas ramadas foram ainda retiradas de cima de estradas e caminhos porque impediam a passagem de camiões e máquinas agrícolas.
Quando tínhamos muitas pessoas para trabalhar, muitos “moços de lavoura”, muitas “jornaleiras” e famílias numerosas, era fácil e lógico rodar as equipas de trabalho nos vários trabalhos: vindimas, desfolhadas, podas, limpezas, sementeiras. Quando temos de comprar máquinas para fazer os trabalhos e temos a mão de obra limitada, faz sentido especializar numa produção. O meu pai e agricultores vizinhos especializaram-se na produção de leite e passaram a comprar vinho para beber. O meu pai ainda plantou uma vinha em bardo, das castas loureiro e trajadura, mas os 50 litros de vinho nunca tiveram uma qualidade satisfatória. Plantou depois o pomar que agora nos dá fruta e boas recordações.
Entretanto, apesar de todas as ramadas cortadas e vinhas arrancadas, não há memória de ter faltado vinho em Portugal. Pelo contrário, até aumentou a exportação. O vinho é o principal produto agrícola português e está presente em todas as regiões. A quantidade total de vinho produzido baixou 0,8% ao ano, mas o valor aumentou. O vinho português tem mais qualidade, é mais valorizado e mais mecanizado, porque as novas vinhas são plantadas no sistema de “cordão simples” e, claro, por toda a evolução na vinificação. Aconteceu uma evolução parecida com o azeite mas tem sido muito mal recebida, talvez por causa de terem chamado “olival superintensivo”, de estar concentrado no Alentejo e de ser menos bonito que o tradicional montado. Ou talvez tenham cometido pontuais exageros, não sei, só me parece injusta a forma diferente de julgar os olivais e as vinhas. A vinha parece-me igualmente intensiva e nunca foi criticada por isso. Já dizia o meu pai que “mais vale cair em graça do que ser engraçado”.
O artigo foi publicado originalmente em Carlos Neves Agricultor.