O maior desafio não será classificar 30% do planeta como área de conservação, mas fazer cumprir essa protecção, defende o investigador Miguel Bastos Araújo, sobre o resultado da COP15.
É mais difícil concentrar atenções na perda da biodiversidade e na necessidade de a proteger do que sintonizar as pessoas para o problema das alterações climáticas. “Nas cimeiras do clima, temos uma mensagem muito simples: não queremos aumentar a temperatura X, não queremos que as concentrações de dióxido de carbono (CO2) sejam y. Em matéria de biodiversidade, não há uma métrica única”, explica Miguel Bastos Araújo, professor catedrático de Biodiversidade na Universidade de Évora, ao comentar o acordo que saiu da 15.ª Conferência das Partes da Convenção das Nações Unidas para a Diversidade Biológica (COP15), em Montreal.
O investigador lembra que os dados de 2019 indicam que “gastamos 540 mil milhões de dólares em subsídios perversos, que destroem a natureza” e constata que falta uma mensagem simples que traduza a urgência da crise da biodiversidade – como o alerta de que o aquecimento global não pode ultrapassar 1,5 graus, pois a partir daí as alterações climáticas tornam-se perigosas e irreversíveis. “Não é uma coisa que se possa dizer numa simples frase que as pessoas recordem depois em casa”, frisa o cientista que ganhou o Prémio Pessoa de 2018.
E o acordo feito em Montreal será mesmo histórico, a fazer o mundo concentrar-se no problema da natureza que se está a extinguir? “Ainda é cedo para o dizermos”, avança Miguel Bastos Araújo.
Conseguiu-se um acordo histórico na Conferência da Convenção da Biodiversidade em Montreal, como foi dito?
Ainda é cedo para dizermos se é um acordo histórico. Pessoas que estiveram nas negociações diziam que que não sabiam se seria o equivalente ao Acordo de Paris para a Biodiversidade ou o fracasso da COP do clima Copenhaga. Possivelmente, será algo entre os dois. A verdade é que, se olharmos para trás, já houve dois períodos com metas [para a biodiversidade]: para 2010, e as metas de Aichi, para 2020, e a avaliação em ambos os casos foi extremamente negativa. Em relação às 23 metas de Aichi, nenhuma foi cumprida integralmente.
Agora, há novas metas, mas o acordo não é vinculativo. Um dos problemas anteriores é que não havia mecanismos obrigatórios de monitorização das metas. Ainda que agora estejam previstos mecanismos de monitorização, são voluntários.
Uma das grandes dificuldades com todos os acordos de biodiversidade, comparativamente aos do clima, é que nas cimeiras (COP) do clima, temos uma mensagem muito simples. Não queremos aumentar a temperatura X, não queremos que as concentrações de CO2 sejam Y. Em matéria de biodiversidade, não há uma métrica única.
A maior parte da biodiversidade do planeta, cerca de 70%, ocorre em 17 países, os países chamados “megadiversos”. Esses países são quase todos nos trópicos, na maior parte dos casos são democracias muito frágeis ou ditaduras
Miguel Bastos Araújo
Em 2010, tentou-se frisar a questão da extinção das espécies. Mas documentar a extinção das espécies é muito difícil, porque é o desaparecimento do último indivíduo de uma determinada espécie. Já houve até casos, por exemplo, na Costa Rica, com alguns anfíbios, que foram documentadas como extintas, porque já não eram vistas há muitos anos, e foi publicado em revistas como a Nature, e passado uns anos, a espécie voltou a aparecer.
Por outro lado, são múltiplas variáveis. Se nos detivermos nas [23] metas que foram acordadas, são multivariadas. Não é uma coisa simples, como vamos reduzir as emissões de CO2. Isso não seria um problema se nós não vivêssemos num mundo muito mediatizado.
Mas o sucesso de muitas políticas tem a ver com a sua mediatização e com a capacidade de angariar apoios. E não é fácil comunicar uma política que tenha 20 métricas e todas elas com um certo grau de ndependêcina face às outras. Portanto, é preciso meia hora, uma hora, para as explicar. Não é uma coisa que se possa dizer numa simples frase que as pessoas recordem depois em casa.
É só uma questão de mensagem?
Há uma dificuldade estrutural que até é mais séria, que é o facto de a maior parte da biodiversidade do planeta, cerca de 70%, ocorrer em 17 países, os países chamados “megadiversos”. Esses países são quase todos nos trópicos, na maior parte dos casos são democracias muito frágeis ou ditaduras. São pobres, com poucos recursos. Não estão dispostos a gastar dinheiro a preservar o que nós podemos classificar como um bem público de cariz internacional. Portanto, exigem que isso seja financiado pelos países desenvolvidos.
Acontece que os países desenvolvidos, que são democracias, também têm dificuldade em enviar grandes quantidades de dinheiro, até porque têm de o justificar perante os seus eleitores. Ao menos tem de haver a garantia de que o dinheiro enviado é usado para cumprir os objectivos.
Mas todos sabemos que em países onde os sistemas de governação são muito frágeis, existem níveis de corrupção extremamente elevados e é muito difícil acompanhar como e onde é que os recursos foram gastos. Por isso, existe alguma reticência em relação a transferências muito grandes de verbas para os países do Sul.
Esta dualidade faz com que […]