Foi publicado um artigo no Público (Secção P3) sobre o impacto da pecuária para as alterações climáticas.
O artigo é de Nuno Alvim, ativista e presidente da Associação Vegetariana Portuguesa. Na minha opinião, um vegetariano/vegano sincero.
Porquê sincero? Porque o Nuno se define como “um confesso idealista e também um nadinha realista”. Não posso estar mais de acordo. O problema é que o modelo idealista concebido pelo Nuno poderá não estar de acordo com a ciência existente. E quando assim é, o que cede não são os modelos idealistas concebidos…é a ciência que passa para segundo plano. E também me parece que o Nuno é um “nadinha” realista…muito perto do nada, como vamos ver.
Nuno traz os “greatest hits” dos defensores dos animais e veganos sobre o impacto da pecuária nas alterações climáticas. Diz-nos mesmo que esse impacto é superior aos transportes. Este é o ponto que vamos avaliar de forma detalhada:
Estima-se que a produção de animais seja responsável pela emissão global de cerca de 14,5% dos gases poluentes de estufa, ao passo que todos os transportes no mundo são responsáveis por 13% dessa emissão global, comparativamente. Esta é a estimativa mais conservadora. Outros relatórios indicam que o valor total das emissões da agropecuária pode alcançar os 51%.
Então, segundo o Nuno, de todos os sectores produtivos a pecuária é o que mais contribui para a emissão de gases poluentes, estando mesmo acima dos transportes. A contribuição global poderá chegar aos 51%! Incrível!
Mas será mesmo assim? Um “realista” com dois dedos de testa pelo menos faria a seguinte pergunta: como é possível haver números tão díspares uns dos outros? É que de 14.5% para 51% não é um erro de medição, é estar a trabalhar com dados de um planeta diferente. No entanto, como este número é favorável aos crentes fanáticos, aposto que nem sequer se deram ao trabalho de ler o relatório ou uma eventual crítica ao mesmo. E essas críticas não faltam.
Comecemos pelo relatório da FAO de 2006
Em 2006 foi publicado um relatório da FAO, designado Livestock Longshadow. Neste relatório, a conclusão principal e que encheu os “defensores dos animais” com lágrimas de pura alegria foi que a produção global de carne era responsável por 18% das emissões de gases de efeito-estufa, um pouco mais do que todos os carros, comboios e aviões do mundo juntos. O problema é que o relatório estava cheio de erros de avaliação. Tanto, que teve direito a um artigo científico a desfazer todos os erros metodológicos identificados. O artigo é longo, tem mais de 30 páginas, mas o erro fundamental foi a comparação de coisas completamente distintas. Enquanto que do lado dos animais foi calculado tudo o que os investigadores possam ter imaginado (desde o cultivo de rações, gases libertados pelos animais, os vários processos industriais envolvidos na produção e entrega de carne e produtos lácteos), do outro lado, ao avaliar o impacto dos transportes, apenas incluíram a emissão de gases do efeito-estufa dos combustíveis queimados pelos transportes. Não consideraram o impacto da construção do transportes e da manutenção desses mesmos transportes, assim como das vias em que circulam (estradas, ferrovias e aeroportos). Se consideraram todos os factores possíveis e imagináveis para contabilizar os gases efeito-estufa produzidos pelos animais então, para uma comparação justa, deviam fazer o mesmo do lado dos transportes.
Existiam mais erros metodológicos como o cálculo da desflorestação, que não levou em consideração a reflorestação que se observa em alguns países, que tem um impacto positivo devido à reabsorção de CO2 e minimização do impacto da agropecuária nas libertação de gases de efeito-estufa. Mas sem dúvida que o primeiro erro que falamos acima foi o que matou o relatório.
Desfazer a completa mentira dos 51%
Não satisfeitos com os números, a Worldwatch publica um relatório em 2009, onde nos diz que o relatório da FAO de 2006 não vai suficientemente longe (é verdade….). Concluem que a agropecuária contribui com 51% das emissões de equivalentes de dióxido de carbono. O engraçado é perceber que este relatório, não sujeito a revisão interpares, foi escrito por Robert Goodland e Jeff Anhang, dois veganos. (Mas que informação dramática…) Depois da publicação desta comédia de relatório, surgiram vários artigos a desmistificar e condenar o mesmo. Aqui uma explicação detalhada por Stephen Walsh, que foi vice-presidente da UK Vegan Society, que descarta o estudo para canto, acusando-o de usar “fraca ciência” (um vegano moderado! Boa!). Aqui um estudo científico que destrói o relatório. E aqui um artigo de um blog que explica os pontos mais relevantes de forma simplificada. Mas por alguma razão, apesar dos vários sinais de alerta, os crentes fanáticos como o Nuno não se coíbem de o citar. Vamos ver os pontos mais relevantes.
Primeiro, os autores referem que o relatório da FAO de 2006 não incluiu a respiração do gado como fonte de emissões de CO2. A respiração, ok? O ar que a vaca exala. Como o CO2 que os seres humanos emitem quando expiram. Ou seja, o simples facto das vacas estarem vivas. O problema nesta abordagem é que os autores “esquecem-se” de um pequeno pormenor. O CO2 é um produto residual do metabolismo. No caso das vacas, elas comem as plantas e transformam as mesmas em energia e numa série de subprodutos como o CO2 e Metano que depois libertam. No entanto, se as plantas não forem comidas pelos animais, serão digeridas por insectos ou bactérias no solo que acabarão por libertar na mesma o carbono para a atmosfera. Esse processo vai acontecer inevitavelmente. A planta vai crescer, morrer, decompor-se e libertar o carbono que absorveu da atmosfera de volta para a atmosfera, seja realizado pela vaca ou por outros seres vivos. E se é para fazer esse tipo de contabilização, então teria que ser contabilizado o CO2 exalado pelos seres humanos e outros animais. E Goodland e Anhan negligenciaram essas outras fontes de CO2 exalado.
Depois os autores abordam a utilização da terra. Dizem que a FAO contabiliza a desflorestação causada pela agropecuária, mas referem que a estimativa é muito baixa porque não conta as emissões de todas as terras pré-existentes usadas para sustentar o gado, que poderiam ser usadas para cultivar biocombustíveis. Seria como dizer que não contabilizaram a minha casa-de-banho como um emissor de gases de efeito-estufa porque não cultivo biodiesel na sanita ou no bidé.
Outra questão que se levanta nesse relatório é a forma como contabilizaram o metano, que é um equivalente de CO2 libertado pelas vacas. Sabemos que o metano é um gás com efeito-estufa muito mais potente que o CO2. No entanto, enquanto o CO2 fica na atmosfera durante 20-200 anos, o metano fica durante cerca de 12 anos, convertendo-se depois em CO2. Ou seja, no curto prazo tem muito impacto, mas no longo prazo nem por isso. Portanto, quanto menor o tempo escolhido para analisar a evolução dos gases efeito-estufa na atmosfera, maior será o impacto deste gás para o aquecimento global. Goodland e Anhang sugerem que, em vez de usar o prazo de 100 anos proposto pela FAO (e o habitualmente utilizado por todas as agências dedicadas ao tema), se utilize uma análise a 20 anos. Isso triplica o impacto aparente das emissões de metano quando convertidas em unidades equivalentes de CO2. Não é que esteja incorreto, mas isso leva a uma alteração das escalas utilizadas e não torna comparável as conclusões dos dois relatórios, já que avaliam coisas diferentes. Ou seja, é brincar às estatísticas e utilizar a que dá mais jeito.
Mas não só. Quando os autores contabilizam o metano, não fazem a recalibração das emissões de metano de outros animais que não o gado, dizendo que isso exige “mais trabalho”. Assim como fizeram com as emissões respiratórias de CO2, eles inflacionam as emissões de metano emitidas pelos animais de pecuária, negligenciando as emissões de metano provenientes de outras fontes. Então, brincando às estatísticas, dão a impressão que as emissões de metano do gado é astronómica, já que não fizeram qualquer tipo de correção.
Finalmente, os autores têm uma categoria “outros” para as diversas emissões que afirmam que a FAO subestima. A justificação para aumentar as estimativas dessas “outras” categorias é o argumento que a FAO utilizou informações antigas – a partir dos anos 90 e início dos anos 2000. Sabemos que a quantidade de gado aumentou desde então, então sabemos que as emissões do gado também devem ter aumentado, argumentam os autores. Sim, é verdade. No entanto, também sabemos que os chineses estão a conduzir muito mais carros, então as emissões de CO2 provenientes dos transportes também aumentaram. E também estamos a voar mais e a consumir mais vestuário e smartphones… Logo, se os autores pretendiam capturar com “mais precisão” as emissões do gado em 2009 também precisavam de contabilizar todas essas outras categorias de emissões, dado que a apresentação dos números é relativa às emissões totais de equivalentes de CO2 e não absoluta. Mas não me parece que tenha sido essa a intenção dos autores.
Conclusão: Nem sequer era preciso escrever este texto todo para demonstrar, baseado nos outros relatórios existentes e nos números que apresentam, que este relatório é uma “anormalidade” que não deve ser levada a sério. Veganos fanáticos a serem veganos fanáticos.
Relatório da FAO de 2013 Versus IPCC 2014
No relatório publicado pela FAO, em 2013, observamos que a percentagem relativa dos gases com efeito-estufa atribuídos ao gado baixa de 18% para 14.5%. Penso que é a este relatório que o Nuno se refere na sua publicação. No entanto, convém salientar que este número aborda todo o ciclo de produção e não diz respeito apenas às vacas (é importante referir esse ponto dado o título do artigo do Nuno), mas sim a todos os animais de pecuária. E não se refere apenas à produção de carne, mas também à produção de ovos, lã e laticínios fornecidos pelos animais.
O que é interessante observar é o cherry-picking realizado pelos veganos e defensores dos animais quando falam da pecuária e emissões de gases efeito-estufa. Aliás, o Nuno diz mesmo que este relatório da FAO é a estimativa mais conservadora! Nuno, Nuno…menos idealismo e mais realismo. O IPCC refere que tanto em 2005 (4º avaliação do IPCC) como em 2010 (5º avaliação do IPCC), a agricultura (incluindo não apenas pecuária, mas também produção de alimentos, biocombustível e outras) respondia por cerca de 10% a 12% das emissões globais antropogénicas de gases de efeito-estufa (expresso em equivalentes de dióxido de carbono a 100 anos). Deixo um gráfico que demonstra a evolução da emissões de gases de efeito-estufa. Como podem ver, a contribuição da agricultura (não apenas da pecuária, mas de toda a agricultura), tem-se mantido constante ao longo do tempo, em termos relativos.
No entanto, é justo dizer que esta avaliação separa o consumo energético. O consumo energético pensa-se contribuir com 0.4–0.6 GtCO2eq/ano para os 5.2–5.8 GtCO2eq/ano produzidos pela agricultura. Ou seja, aumentando 10% da produção a contribuição total para os gases efeito-estufa. Contas de merceeiro, passamos a contar com 12 a 13% de contribuição total.
Outra coisa engraçada que nunca verão os veganos citar é algo semelhante ao que discutimos sobre a agricultura biológica.
Vamos supor que acabavam os animais. Qual seria o verdadeiro impacto na emissão de equivalentes de CO2?
Um erro habitual neste tipo de avaliações é esquecer-se de contabilizar o impacto das medidas de compensação para substituir o produto que deixamos de produzir. Ou seja, as vacas desaparecem, alguma coisa vem em lugar delas. Se deixa de usar lã, vai usar outra coisa em vez de lã. Se deixa de comer carne, vai comer outra coisa que não carne. Só considerando ambas as parcelas conseguimos ter uma visão realista do impacto ambiental de determinadas medidas. E, pelos vistos, acabar com as vacas não tem o impacto que os veganos e ambientalistas fanáticos pensam.
Se os animais fossem completamente removidos da agricultura e da dieta dos Estados Unidos (EUA), que é dos países que mais consome produtos animais, as emissões nos EUA seriam reduzidas em 2,6% no total de gases de efeito-estufa produzidos (ou seja, em 28% das emissões provenientes da agricultura americana). Isto acontece devido à necessidade de substituir fertilizantes de animais (estrume) por fertilizantes sintéticos. Além disso, o gado recicla alimentos não comestíveis pelos seres humanos e subprodutos de processamento de fibras, convertendo-os em alimentos comestíveis para humanos, alimentos para animais de estimação e produtos industriais. Tudo isto precisaria de ser gerido. E tem um custo associado.
Outra coisa que é necessário contabilizar é a existência de diferenças brutais na contribuição dos animais para os gases efeito-estufa, dependendo dos sistemas de criação. A FAO assume que é possível reduzir em 30% o impacto ambiental da criação animal apenas alterando a forma como se cria os animais, a alimentação utilizada, como se produz esse alimento (principalmente reduzindo a aplicação de fertilizantes sintéticos) e como se faz a gestão do estrume. Ou seja, trabalhando na eficiência de produção. Isto sem falar nas soluções que passam pela edição genética, como abordamos parcialmente aqui ou recorrendo a novas técnicas como acrescentar a alga Asparagopsis taxiformis à ração, que poderá eventualmente reduzir a produção de metano emitido pelas vacas entre 80 e 99%. Ou seja, há várias formas de dar a volta à questão para lá das habituais cantigas “temos que deixar de comer carne” ou qualquer variação desta música.
Conclusão
Depois de apresentados os factos de uma forma mais abrangente, pensem se é possível, sequer, os animais serem os maiores contribuidores para os gases efeito-estufa. E antes que me chamem “Beef Shill“, vou virar o bico ao prego. Sempre que um fanático ambientalista, vegano com défice de B12 ou defensor dos direitos dos animais distorce os números relacionados com a contribuição dos animais para os gases efeito-estufa, os tipos do petróleo e do carvão têm um orgasmo mental. É que os combustíveis fósseis contribuem com 64% dos gases de efeito-estufa de origem antropogénica e em países desenvolvidos esse valor chega a ultrapassar os 80%, onde supostamente o veganismo “resolveria o problema” já que somos os grandes consumidores de produtos animais.
Começo a achar que estes tipos são pagos pela Indústria Energética poluente para dizerem que os animais são os maiores contribuidores para os gases efeito-estufa…levem esta para casa.
E acabamos com uma imagem bastante completa da produção mundial de gases de efeito-estufa (dados de 2012). Nesta avaliação o gado, juntamente com o estrume, contribuem no total com 6.5% para este efeito (clicar aqui para ver imagem ampliada).
Fonte: Scimed