Se num dia de muito calor acontecer passarmos diante dum escaparate com boiões grandes de iogurte grego, devemos comprar pelo menos um e ainda um limão, três pepinos e hortelã de bom perfume (que seja suficiente para enchermos, a mais do que a trasbordar, uma chávena de chá com as folhas cortadas à tesoura). Descascamos os pepinos, rapamos-lhes as sementes e cortamo-los em picado de modo a ficarem quase em papa, salgamo-los e deixamo-los a escorrer bem num coador. Acrescentamos dois dentes de alho esmagadíssimos. E o sumo do limão. E misturamos tudo: o iogurte, os pepinos escorridos com o sal e o alho, o sumo de limão. Provamos para ajustar o sal. Misturamos, cuidadosa e finalmente, a hortelã. Contenhamos a gulodice e deixemos ficar por umas horas no frigorífico. Depois…
…depois podemos provar com salada, ou com carne grelhada, ou com um cabrito no forno, ou com um arroz solto, ou à colherada por puro deleite numa tostinha e cama feita a um branco gelado, um rosé mais gelado ainda, um tinto aberto dos raros que se provam às vezes.
No nosso almoço, o de amigos nascidos nos anos 50, em casa, aliás, nos jardins secretos da Patrícia Jacquot e do Acácio Pimentel, há dias, havia uma mesa cuja decoração foi mudando e por onde passaram coisas óptimas, até as fotografámos para memória futura. Mas quando pensamos nessas mesas sucessivas de cores e surpresas, de mão do Acácio, em que houve queijos e azeitonas, bacalhau, tripas, couscous, milhos, verduras várias e temperos soberbos, cabrito que se cortava com um prato, sabores trasmontanos e minhotos com sangue, cominhos e cravinho, havia uma taça, que se distingue na nossa imagem mental: a do creme de iogurte com pepino, da mão da Patrícia, em que o pepino estava lá, mas tão bem acompanhado que se sumia sem perder a personalidade – seria o mesmo que uma das fotos de um de nós num museu de cera ao lado da Raquel Welch: nós estamos lá mas o que salta à vista é a Raquel Welch vestida ou não como se quiser. O que tinha aquele iogurte? Houve imensos palpites, mas o aahhh! foi geral quando a Patrícia revelou que o creme tinha pepino: depois de se saber era fácil, só um fruto desses para dar aquela estrutura – e havia ali uma grande mestria em conseguir-se o resultado, aquele resultado e não outro. Rapámos a taça!
A Casa da Deveza, em Azevedo, faz jus ao nome: no Dicionário da Academia, uma devesa é uma alameda que delimita um terreno; lugar cercado por arvoredo; mata ou arvoredo cercado ou murado; souto; campo fértil na margem dum rio. Ora, a casa da Patrícia e do Acácio é isso tudo e ainda mais! Aliás, é o dicionário que está incompleto já que deveria acrescentar (não duvidamos que o será em edições futuras!) pedaço de éden em que os donos recebem os amigos. Com uma vantagem sobre o Éden primordial, já que esse não se sabe onde ficava – e este fica mesmo ao pé de Caminha! (É uma casa particular e não um estabelecimento público, esclareça-se!). Passear naqueles jardins de gosto inglês, em que os nossos pés se afundam em muitos centímetros de relva de folha larga, fez-nos mudar tão bem da nossa vida nesse dia que foi com motivos de alegrias e sem nostalgias tristes que conversámos sobre infâncias, carreiras, negócios, amigos presentes e ausentes, festas e lutos como se um caleidoscópio, especial porque todo ele verde (estávamos no Minho, para todos os efeitos), para lá desse especial porque o verde tinha as intermitências dos áceres, do bambu, do colorido das fatiotas de todos nós, as nossas vozes, o passear dos leões-da-rodésia com a sua agitação e imponência, o imaginar mitológico e anedótico dum canguru por ali aos saltos, o vôo das garças a vir buscar os peixes da taça de água, como se um caleidoscópio, dizia, nos maravilhasse com os vislumbres dos nossos professores, das aulas, das férias, das marotices ingénuas de há meio século em Trás-os-Montes que nos fizeram, afinal, a todos, estarmos ali.
Tenho a certeza de que ao experimentar construir o creme de iogurte, o pepino vai estar a mais ou a menos. O que até será bom, porque teremos de repetir a experiência até acertarmos e cada repetição exigirá aprumo e denodo culinário. A Mariana zelará pelo meu aprumo. Para o denodo já pusemos o rosé no frigorífico. Falta vir um dia de calor com uma tarde de sol para irmos buscar o boião de iogurte grego. Até lá, vamo-nos consolando com a amizade das mensagens, das fotos, dos videoclips do nosso grupo dos anos cinquenta no whatsapp!… Qual o rosé que pusemos no frigorífico?! Ah! Pois é!… revelaremos num dia de Verão a sério já que é um rosé a sério, intencional. Saúde, Patrícia e Acácio!
Manuel Cardoso
Consultor e escritor
Artigo publicado originalmente em Eggas.