Há anos, quando escrevia só sobre questões de ambiente, dediquei umas horas largas a discutir ignições e a sua relevância para a política de gestão do fogo (deixem-me insistir mais uma vez, as políticas de combate ao fogo florestal não me interessam muito, o que me interessa é a política de gestão do fogo, um instrumento de modelação da paisagem de primeira grandeza) e, para não me repetir, ponho aqui a pesquisa desse blog para “ignições” e quem tiver interesse que dê por lá uma volta, que eu já me cansei dessa discussão que voltou e entrar em força no debate público sobre fogos.
Se for mesmo obrigado a dizer qualquer coisa, eu diria que é útil haver menos ignições que mais ignições, do ponto de vista operacional, que isso até pode ser trabalhado nos dias de maior risco (os dias de maior risco em Portugal são 12 a 15 dias em que arde 80% da área anual, não vale a pena andar a fazer avisos mais ou menos para os outros 350 dias no ano), mas não é uma questão central no desenho de políticas para a convivência tranquila com o fogo.
Entretanto percebi que o mito das ignições nocturnas, para além de persistente, é muito generalizado (um dia destes um dos meus irmãos, na sequência desta conversa com José Gomes Ferreira, fez um comentário lateral a dizer que nunca tinha percebido isso das ignições nocturnas) e, apesar de na busca para que liguei acima haver posts com discussão de ignições nocturnas, resolvi fazer uma coisa um bocadinho mais estruturada depois de ouvir uma intervenção delirante de Filipe Duarte Santos, na rádio Observador, em que o mito das ignições nocturnas estava muito presente.
A persistência do mito que leva a considerar todas as ignições nocturnas como fogo posto tem uma base sólida de ignorância.
O primeiro ponto é que nocturno, para o sistema de detecção e registo de fogos, é das oito da noite às oito da manhã, portanto, incluindo muito tempo que não cabe na definição comum de noite.
O segundo ponto é que muita gente desconhece que o toque de uma copa numa linha de elctricidade, o choque de uma ave e muitas outras coisas pequeninas como essas, geram faíscas (muitos dias no ano, simplesmente se as condições não forem favoráveis à progressão do fogo, o assunto morre).
O terceiro ponto é a ideia de que não existem actividades humanas durante a noite, como se não houvesse circulação de carros e motas durante muitas horas à noite, nas zonas mais estranhas, apoiando as mais estranhas actividades humanas.
O quarto ponto é que muita gente desconhece o facto de 80% das ignições (incluindo as nocturnas), ocorrem num raio de 2 Km de distância a um aglomerado populacional, portanto, para além de um conjunto vasto, distribuído e especialista em meteorologia de maluquinhos do fogo, temos de concluir que temos muitos maluquinhos do fogo burros porque desencadeiam ignições mesmo ao lado de casa, em vez de as ir fazer onde ninguém as detectasse até ser tarde.
O quinto ponto é que com a repressão ao uso do fogo e a paranóia securitária associada, há mais que suficientes registos, quer de queima de sobrantes, quer de queimadas de pastores, feitas de noite como defesa contra o longo braço repressivo do Estado.
E, sobretudo, há uma incredulidade geral sobre a existência de ignições retardadas, isto é, o que o sistema de detecção e registo de fogos detecta e regista são ocorrências com dimensão suficiente para ser detectadas, não é o momento físico e químico da primeira ignição.
Há muito quem não acredite que uma faísca produzida ao meio dia, e caída sobre combustível disponível mas escasso ou com uma estrutura pouco favorável à progressão, possa estar por ali a pastar lentamente até ao momento em que, progredindo lentamente, provavelmente mais sob a forma de brasas que de chamas, chega a combustível mais favorável ou que as alterações meteorológicas (sobretudo, direcção e intensidade do vento) acelerem o processo de combustão ao ponto de incandescer o material e provocar um fogo suficientemente grande para ser detectável, por exemplo, às três da manhã.
Esta incredulidade é estranha porque o que não faltam são registos de incêndios em edifícios resultantes de fogos mal apagados, mas o facto é que existe.
Há quem estude o assunto e, de memória, o registo mais longo de que tenho ideia, num artigo científico sobre fogos provocados por raios, era o de um incêndio que eclodiu um mês depois do raio que lhe deu origem, sendo evidente que, durante esse intervalo a combustão nunca se extinguiu, mas foi sendo de muito baixa intensidade até encontrar, um mês depois, condições favoráveis à progressão.
De resto, para quem clama pela necessidade de ter estudos que se debrucem sobre as motivações dos incendiários, talvez seja útil saber que esses estudos existem e resumo aqui as conclusões (de memória, via José Miguel Cardoso Pereira) de um desses estudos, feito em Portugal, com base na entrevista por uma psicóloga forense, a mais de 400 condenados por fogo posto.
Dos mais de 400 entrevistados, 2 eram verdadeiros pirómanos, uns 12 eram pessoas que sabiam o que faziam e tinham motivação económica, e dos restantes noventa e muitos por cento, um bocadinho mais de metade eram pessoas com défices cognitivos, problemas de dependências (alcool, drogas), desestruturação social, etc., actuando sob o efeito desses factores externos, e a outra quase metade era conflitualidade social como problemas de águas, de vizinhança e coisas que tais.
Boa sorte com essa coisa de resolverem a gestão do fogo tendo como questão central as ignições, nocturnas ou outras.
O artigo foi publicado originalmente em Corta-fitas.