Em plena transição climático-ecológica-energética-tecnológica-digital, os materiais raros do mundo rural português denominam-se solo, água, microclimas, biodiversidade, ecossistemas e serviços de ecossistema. A única certeza que temos é que, no futuro próximo, por causa desta Grande Transição, o campo nos revelará uma pluralidade de campos, na exata medida em que o campo será simultaneamente um espaço produtor e um espaço produzido.
Em matéria de política agrícola comum (PAC), a próxima década será muito marcada pelas chamadas condições de formulação. Estou a falar do pacto ecológico europeu, a descarbonização, os ecoregimes e a condicionalidade verde, a pegada ecológica dos alimentos e a segurança alimentar, mas, também, do maior enfoque atribuído à dimensão social da PAC, por via de um melhor direcionamento das ajudas diretas e sua limitação, dos pagamentos redistribuídos (10% das ajudas diretas) e dos apoios aos jovens agricultores e zonas desfavorecidas em matéria de incentivos ao emprego. Nestas condições julgamos que poderão emergir três modelos de agricultura.
O modelo agricultura, ambiente, alimentação (AAA)
No primeiro modelo, agricultura, ambiente, alimentação (AAA), inspirado numa conceção mais capitalista e bio industrial, os traços principais serão a automatização (agricultura de precisão), a vigilância (prevenção de riscos), a certificação (esquema ESG) e a globalização (exportação) das suas cadeias de valor. Trata-se de uma agricultura de base empresarial, assente em médias e grandes explorações, com maior musculo financeiro e, portanto, com acesso facilitado aos incentivos financeiros da política pública, aos créditos do sistema bancário e aos investimentos de futuros sócios e acionistas. O modelo AAA pratica uma agricultura comercial, verticalizada e associada, cada vez mais, aos diversos sistemas de certificação que testemunham a qualidade dos seus produtos finais.
Esta agricultura AAA acompanhará de perto os avanços tecnológicos já conseguidos no domínio da chamada agricultura de precisão e transformação digital. No âmbito da internet das coisas (IOT) e dos sistemas automáticos praticamente nada escapará aos dispositivos de monitorização, a rastreabilidade será total e a recolha e tratamento de dados uma tarefa primordial para a agricultura de precisão. Assim sendo, teremos seguramente uma ocupação do território muito diferente da atual, com menos gente in situ e mais gente ex situ ocupada em tarefas de vigilância, programação, planeamento e controlo, geridas à distância por seres aumentados que administram interfaces eletrónicos e digitais de todo o tipo. Em resumo, há aqui um campo imenso para novas especialidades e novas oportunidades para as novas gerações de start-up da 2ª ruralidade.
O modelo de inteligência coletiva territorial (ICT)
No segundo modelo, aqui designado de inteligência coletiva territorial (ICT), inspirado e assente no princípio ativo das redes e plataformas colaborativas e numa conceção de base mais reticular e horizontal, teremos uma pluralidade muito diversa de agriculturas cujos exemplos mais interessantes serão os seguintes: os SAL (sistemas agroalimentares locais e os parques agroecológicos urbanos), os SAF (sistemas agroflorestais autóctones), os SAP ( as áreas integradas de gestão paisagística), os terroirs e as pequenas agriculturas de nicho e denominação de origem, os condomínios de aldeia e os agroturismos respetivos e, de uma maneira geral, os ecossistemas de base territorial que em plena transição climático-ecológica serão de uma grande utilidade em tudo o que diga respeito, por exemplo, ao funcionamento dos ecoregimes e, também, a operações de mitigação e adaptação no combate às alterações climáticas. O modelo ICT poderá, mesmo, praticar um novo modelo de negócio a partir dos vários ecoregimes disponíveis.
O modelo de agricultura acompanhada pela comunidade (AAC)
No terceiro modelo, aqui designado de agricultura acompanhada pela comunidade (AAC), teremos uma tipologia muito variada de agriculturas sociais e comunitárias (por exemplo, a agricultura urbana vertical) e uma variedade de práticas agrícolas de proximidade e baixa intensidade onde se contam a agricultura social e comunitária, os circuitos curtos de comercialização (CCC), os mercados locais, o abastecimento institucional (cantinas, lares, creches, escolas), quase sempre de acordo com uma lógica de solidariedade e coesão social em matéria de pequenos rendimentos e consumos de proximidade.
Aos modelos de agricultura referidos correspondem, evidentemente, condições de implementação muito diferenciadas. A agricultura AAA reúne competências e capacidades técnicas, humanas e financeiras para verticalizar e especializar a sua estratégia. Tem organização corporativa própria, acesso facilitado aos corredores do poder e, para além dos seus departamentos técnicos, recorre ao regime de assessoria sempre que necessário.
As agriculturas ICT e AAC são mais frágeis, trabalham a uma escala mais reduzida, têm de conciliar um número maior de interesses locais e territoriais, reúnem, geralmente, menos competências e capacidades próprias, a sua preferência vai para pequenas estruturas de missão ou curadoria que fazem um trabalho minucioso de articulação territorial. As associações de produtores, as cooperativas, as associações de desenvolvimento local (ADL), os grupos de ação local (GAL), as zonas de intervenção florestal (ZIF), a gestão das áreas de paisagem protegida (APP), as associações de municípios e comunidades intermunicipais, têm desempenhado, direta e indiretamente, esse papel de curadoria, sempre em condições muito precárias pois todos eles dependem de concursos, candidaturas, subsídios e pagamentos públicos.
Todos os casos mencionados não dispensam, todavia, o papel de agente principal que deve ser desempenhado pelas direções regionais de agricultura e pescas (DRAP), cuja missão essencial é, justamente, constituir e pôr a funcionar uma plataforma colaborativa regional – escolas superiores agrárias e escolas profissionais agrícolas, centros de investigação, associações e cooperativas de produtores e associações de desenvolvimento local – e um programa integrado de desenvolvimento rural para onde todas as medidas de política e respetivos incentivos possam convergir. As DRAP são o pivot desta plataforma e deste programa integrado e dele devem constar necessariamente:
– Em primeiro lugar, uma efetiva cooperação entre os três modelos de agricultura já mencionados e, por essa via, a circulação de jovens agricultores/estagiários e o rejuvenescimento da classe empresarial da agricultura,
– Em segundo lugar, um programa alargado de literacia ecológica e digital em colaboração com as escolas superiores agrárias e as escolas profissionais de agricultura,
– Em terceiro lugar, o respeito pelas normas e a responsabilidade ESG (ambiente, sociedade, governação corporativa), em matéria de boas práticas de economia circular, bioeconomia e agroecologia,
– Em quarto lugar, a revitalização dos departamentos de formação e extensão rural das direções regionais de agricultura e o regresso às redes e plataformas de formação e extensão rural,
– Em quinto lugar, a colaboração dos centros de investigação, incubadoras e espaços de coworking no lançamento e acompanhamento de start up e sua integração no meio rural,
– Por último, no quadro da plataforma colaborativa regional desenvolver uma curadoria técnica na área da inovação financeira em matéria de novas fórmulas de capitalização de unidades empresariais, mas, também, de associações, cooperativas e comunidades (capital de risco mais crowdfunding).
Nota Final
Em síntese, uma política pública como a PAC tem condições de formulação e de realização que, na conjuntura nacional e europeia, dificilmente convergirão pacificamente durante a década. Por isso, a clivagem inicial entre grandes e pequenas explorações, assim como os efeitos assimétricos de percurso, precisam de ser devidamente acautelados. Essa é a razão pela qual o nosso programa específico para a PAC, o PEPAC, necessita de ser permanentemente reajustado nas suas condições de realização em concreto, em função dos inúmeros incidentes e acidentes de percurso que não deixarão de surgir com as alterações climáticas, a falta de sintonia nas reformas estruturais, as fricções de natureza corporativa, os problemas de infraestruturação, cobertura e literacia digitais, as alterações derivadas do próximo alargamento, para citar apenas os principais. Essa é, também, a razão para uma melhor autorregulação e autogestão do setor por via de plataformas de cooperação e inovação entre os três modelos de agricultura.
Professor Catedrático na Universidade do Algarve
Do rural tardio português até à 2ª ruralidade – O mix agro rural de fins múltiplos