Portugal é, desde abril de 1996, signatário da Convenção das Nações Unidas de Combate à Desertificação nos Países Afetados por Seca Grave e ou Desertificação, particularmente em África (CNUCD) (2), que reconhece a importância da cooperação internacional e da ação a nível local no combate à desertificação e na mitigação dos efeitos da seca.
Volvidos quase 30 anos sobre esta data, e 23 anos sobre o primeiro Programa de Ação Nacional de Combate à Desertificação (PANCD) (3), a seca agrometeorológica é um tema cada vez mais recorrente à medida que agrava a falta de água induzida pelo desequilíbrio entre a precipitação e a evaporação. Contudo, o fenómeno da desertificação merece uma maior atenção, já que os processos de degradação dos solos estão diretamente ligados a várias atividades humanas, incluindo a construção de grandes obras hidráulicas e as más práticas agrícolas, sobretudo as que estão associadas à agricultura de regadio.
O PANCD em vigor tem duração até 2024, pelo que urge haver um debate alargado e transparente quanto à sua eficácia, assegurando que no âmbito de um novo programa sejam definidas ações concretas a desenvolver e que sejam disponibilizados os meios financeiros necessários à execução dessas ações e ao cumprimento da meta de alcançar a neutralidade na degradação do solo em 2030, conforme os objetivos de desenvolvimento sustentável definidos pelas Nações Unidas.
Portugal cada vez mais árido
No final do mês de maio, a área em seca meteorológica abrangia a totalidade do território de Portugal Continental e 35% encontrava-se em seca severa e extrema, especialmente nas zonas do vale do Tejo, do Alentejo e do Algarve, sendo que nestas regiões persistem valores de água no solo inferiores a 10% (4). Ainda que seja a sequência de períodos de seca meteorológica e as suas consequências para a agricultura, que tenha captado a atenção sazonal do discurso público, esta acontece sob o pano de fundo de um aumento da vulnerabilidade de vários territórios.
Se no período 1960-1990, 36% de Portugal Continental era suscetível à desertificação, no período 1980-2010 esta área correspondia já a mais de metade (58%), mais severo se olharmos para o decénio entre 2000-2010 (63%) (5). A Sul do Rio Tejo a área classificada como semiárido mais que duplicou entre os períodos 1960-1990 e 1980-2010. O Baixo Alentejo, em particular, tem 94% do seu território suscetível à desertificação, com 38% com suscetibilidade crítica (6).
Política nacional ineficaz e potencialmente lesiva.
O Tribunal de Contas (7) veio referir, em 2019, no âmbito de uma auditoria ao PANC 2014-2024, a possibilidade deste ser ineficaz, dada a ausência de uma programação efetiva, com orçamento próprio ou clara articulação com a programação de fundos, assim como a manifesta falta de meios para a operacionalização e monitorização, a fim de alcançar a meta da neutralidade na degradação dos solos. Tanto o Plano Estratégico da Política Agrícola Comum, como o Programa Nacional de Regadios falharam no alinhamento cabal com o combate à desertificação.
A política nacional de regadio tem vindo a despender milhares de milhões de euros em projetos de regadio, com especial incidência sobre o megaprojeto de Alqueva, que terá já sorvido mais de 3 mil milhões de euros, com mais despesas previstas na continuação da expansão. No entanto, estes investimentos nada mais são do que medidas de mitigação de efeitos e não de combate: os contributos para o combate à desertificação são, no mínimo, questionáveis.
O Programa Nacional de Regadios tem, nas últimas décadas e em territórios suscetíveis à desertificação, antagonizado vários objetivos do PANCD, através da(o):
- degradação do património histórico-cultural e das paisagens singulares identitárias (linhas de ação 1.1.4 e 1.4.2), através do favorecimento de monoculturas industriais implementadas em larga escala, com afetações no património arqueológico;
- aposta na monofuncionalidade de vastas áreas contíguas no espaço rural (linha de ação 1.2.1), colocando a produção de mercadorias para exportação em competição com os restantes serviços dos ecossistemas (linha de ação 1.3.2);
- desvalorização dos conhecimentos, práticas e sistemas agrícolas praticados pelas comunidades locais (linha de ação 1.3.1), desapoiados face ao imenso investimento público desencadeador de processos de concentração fundiária e da formação de oligopólios;
- incentivo à conversão cultural do montado e de sistemas áreas agrossilvopastoris nas áreas de influência do regadio coletivo de iniciativa estatal (linhas de ação 1.1.4 e 1.4.2, objetivos específicos 2.1, 2.2);
- degradação do solo advinda de más práticas de instalação de culturas de regadio, e à falta de fiscalização das áreas da Reserva Ecológica Nacional (linhas de ação 2.4.2, 3.1.2 e 3.2.6);
- incentivo do aumento exponencial da utilização de água (linha de ação 3.2.1), nas áreas diretamente servidas pelos aproveitamentos hidroagrícolas e em outras, com recurso também a captações de água subterrânea (linha de ação 3.2.3), dado o favorecimento do agronegócio e a parca monitorização do ordenamento do território (linha de ação 3.1.4);
- degradação da biodiversidade (objetivo específico 3.3), através da conversão cultural, simplificação da paisagem e intensificação do uso do solo, sendo as principais causas do colapso da avifauna (8) e da flora (9) em vários territórios;
- aumento das emissões de gases de efeito de estufa, por substituição de sistemas agrícolas com maior potencial de sumidouro para outros de menor potencial (linha de ação 3.4.1), emissões dos solos sujeitos às mobilizações de implementação. Também um maior consumo de energia pelas monoculturas de regadio associada a integração de altos níveis de mecanização, automação e incorporação de inputs;
- incapacidade de inverter as tendências de perda de população (linha de ação 1.2.8) da maioria dos territórios suscetíveis (10), dado o favorecimento da concentração da riqueza gerada (11)
Programa Nacional de Regadios carece de avaliação e discussão alargada, inclusiva e transparente.
O Governo prepara-se para validar as bases para um novo programa nacional para o regadio, o designado “Livro Branco do Regadio Público”. É crucial que este programa nacional, que irá determinar grande parte do investimento público em territórios suscetíveis à desertificação, assegure a participação de toda a sociedade civil em dois processos indispensáveis: (1) uma avaliação dos impactes do programa nacional de regadios, sobretudo das consequências sócio-ambientais manifestas nos vários territórios, e (2) uma construção participada e de base territorial do novo programa.
A política nacional do regadio é política nacional da água, já que determina o destino da maior fatia das captações de água, por isso é necessário um envolvimento de toda a sociedade, especialmente das comunidades locais nos territórios que se encontram na linha da frente dos processos de desertificação. É preciso garantir que o Programa Nacional de Regadios se subordina aos objetivos do combate à desertificação.
- Resolução 49/115 adotada na Assembleia Geral das Nações Unidas de 30 de janeiro de 1995
- Aprovada em Paris a 17 de junho de 1994, ratificada pelo Decreto n.º 41/95 de 14 de Dezembro
- Resolução do Conselho de Ministros n.º 69/99, de 9 de julho
- IPMA (2023), Boletim Climático Portugal Continental – Maio 2023
- Resolução do Conselho de Ministros n.º 78/2014, de 24 de dezembro
- Maria José Roxo, em Baixo Alentejo com 94% do território suscetível à desertificação, Observador – 17 de março de 2023:
https://observador.pt/2023/03/17/baixo-alentejo-com-94-do-territorio-suscetivel-a-desertificacao/ - https://erario.tcontas.pt/pt/actos/rel_auditoria/2019/2s/rel019-2019-2s.shtm
- Alonso H, Andrade J, Teodósio J, Lopes A (coord.) (2022) O estado das aves em Portugal, 2022.
2ª edição. Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves, Lisboa. - Carapeto A., Francisco A., Pereira P., Porto M. (eds.). (2020). Lista Vermelha da Flora Vascular de Portugal Continental. Sociedade Portuguesa de Botânica, Associação Portuguesa de Ciência da Vegetação – PHYTOS e Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (coord.). Coleção «Botânica em Português», Volume 7. Lisboa: Imprensa Nacional, 374 pp
- INE (2022), Censos 2021
- INE (2021), Recenseamento Agrícola 2019
Fonte: ZERO