Depois de décadas em queda, os números da fome no mundo voltaram a aumentar com a pandemia. Agora, a guerra no “celeiro da Europa” ameaça deixar entre 7,6 a 13,1 milhões de pessoas sem nada para comer. “Se as Nações Unidas não conseguirem combater a guerra, têm a obrigação de combater a fome”, defendem especialistas ouvidos pelo Expresso
“Vamos tirar comida aos esfomeados para dar aos famintos.” As palavras do diretor executivo do Programa Alimentar Mundial são inequívocas e mostram a escala dramática da crise que se começa a desenhar.
Se no Ocidente os efeitos da guerra já se fazem sentir em cada ida ao supermercado, no Norte de África e Sudoeste Asiático – onde a fome e pobreza extremas já eram uma realidade quotidiana para porções significativas da população – este conflito poderá tirar o pão a muitas mais bocas.
Mais concretamente, a ONU estima que só o impacto desta guerra no mercado dos alimentos poderá fazer 7,6 a 13,1 milhões de pessoas passarem fome. Os custos do Programa Alimentar Mundial já aumentaram 71 milhões de dólares por mês, o suficiente para cortar o acesso a 3,8 milhões de pessoas.
“Neste momento vamos viver uma crise humanitária e alimentar como talvez nunca tenhamos vivido desde a Segunda Guerra Mundial”, considera Pedro Graça, especialista em Nutrição Humana e professor na Universidade do Porto (UP). “Mas foi para lidar com [situações como esta] que foram criados organismos internacionais que não existiam antes da Segunda Guerra Mundial, como a ONU e a FAO [Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura]. Se as Nações Unidas não conseguirem combater a guerra, têm a obrigação de combater a fome. Isso vai ser um dos grandes desafios da ONU neste e no próximo ano.”
No entanto, Bruno Costa, professor de Ciência Política da Universidade da Beira Interior (UBI), salienta que “os programas de apoio alimentar da FAO já não são suficientes para fazer face às necessidades e o conjunto de ajudas dos países mais desenvolvidos centrar-se-ão no apoio direto à Ucrânia”.
Há poucos países onde uma guerra poderia ter maior impacto no mercado global dos alimentos
Mas para compreender o impacto desta guerra na fome mundial é necessário perceber o papel ucraniano no abastecimento de alimentos a nível internacional.
Em 2014, um relatório da FAO destacava as “condições agro-ecológicas altamente favoráveis e localização geográfica favorável” que conferem uma “vantagem competitiva” à agricultura da Ucrânia.
Além de ter várias zonas climáticas que conferem condições favoráveis à produção de uma grande variedade de colheitas, a Ucrânia tem no seu território um dos solos mais férteis do mundo. Cerca de 68% do território ucraniano é chernossolo, um tipo de solo espesso e de cor escura, rico em matéria orgânica e com alto teor de cálcio, com capacidade de produzir enormes colheitas. É um terço do chernossolo existente em todo o mundo.
Como consequência, a Ucrânia tornou-se num verdadeiro “celeiro da Europa”. Segundo o Departamento de Agricultura dos EUA, é líder mundial na produção de óleo e sementes de girassol e está entre os principais produtores mundiais de cevada, centeio, milho e outros cereais, assim como de leite e derivados.
A invasão ocorreu no início da época de plantio, o que significa que muitos terrenos vão ficar por cultivar. A ONU estima que até 30% das terras agrícolas ucranianas podem tornar-se zonas de guerra. Cumulativamente, muitas das pessoas que trabalhavam a terra fugiram ou estão a combater e as máquinas agrícolas foram alocadas nos esforços de guerra ou já não têm reservas de combustível para funcionar. Mesmo que consigam cultivar parte dos terrenos, a Rússia cortou o acesso aos portos do Mar Negro que permitiam a exportação dos produtos.
Por outro lado, o envolvimento russo no conflito também contribui para escalar o problema. A Ucrânia é a sexta maior produção de trigo do mundo, mas em conjunto com a Rússia produzem um terço da oferta a nível mundial. O […]