O Governo quer acabar com as terras sem dono, que passam a ser geridas por uma empresa pública, e pôr fim às propriedades mínimas, em nome do combate aos fogos, avança o secretário de Estado das Florestas, Miguel Freitas, em entrevista à Renascença e “Público”.
Que balanço é possível fazer do que o Governo apresentou como a grande reforma da floresta?
Temos vindo a concretizar aquilo que são as linhas de orientação quer do ponto de vista do ordenamento do território, quer da gestão e à defesa da floresta contra incêndios, que é absolutamente essencial nesta altura. A ideia-chave é agir no curto prazo, olhando sempre para o médio e longo prazo. Queremos resultados rápidos, mas a ideia do médio e longo prazo é essencial porque nos permite olhar para isto de uma forma estruturada. O país urbano, de facto, afastou-se da floresta e o medo é o sentimento do país rural face à floresta. Temos que chamar de novo o país urbano à floresta e fazer frente a esse medo que existe no mundo rural.
E como é que isso se faz?
Trabalhando no domínio da prevenção e protecção das pessoas e bens. É essa a grande prioridade do Governo. Nós estamos muito marcados por aquilo que aconteceu em 2017 e não queremos que se volte a repetir uma situação como aquela. Temos que dar segurança às pessoas. Há este programa de limpeza das florestas, por um lado, e por outro o Estado deve fazer o necessário do ponto de vista da infra-estruturação do território para proteger a floresta, proteger bens e pessoas.
O período de limpeza já começou e vai até 31 de março. Não é demasiado cedo?
Não. Aquilo que a legislação diz é que os proprietários, para limpar à volta das casas e dos aglomerados, têm até 31 de março. Depois temos até 31 de maio para fazer a limpeza das grandes infraestruturas, rodoviárias e ferroviárias, e de manter a limpeza dentro da floresta. Os proprietários devem fazer a limpeza o mais rapidamente possível isto porque, se não o concretizarem, os municípios ficam com a tarefa supletiva de fazer esse trabalho até 31 de maio. É preciso dar um tempo aos proprietários e dar um tempo aos municípios para o fazer. A mensagem passou. No ano passado, os municípios limparam 55 mil hectares. É um esforço notável. Considero, aliás, os municípios os novos grandes actores da floresta. Tínhamos muitos actores da floresta e municípios pouco participativos do ponto de vista daquilo que era a sua responsabilidade. Volvido ano e meio após aquele momento marcante de 2017, o que temos são municípios despertos para esta questão, empenhados em encontrar as boas soluções.
Estamos a falar essencialmente dos municípios que foram atingidos pelos fogos…
Sim, essencialmente. Na área da defesa da floresta contra incêndios temos três dimensões: a dimensão das limpezas, a questão das infra-estruturas – temos planeados cerca de 11 mil quilómetros de auto-estradas de protecção da floresta.
E desses 11 mil quilómetros quantos é que estão preparados?
Em 10 anos fizeram-se 1200 quilómetros. O ano passado fizemos 1500. Este ano temos programados 3000 quilómetros.
Ainda ficamos longe dos 11 mil…
Mas temos uma coisa mais importante que isso. Temos 16 milhões de euros para investir nos próximos quatro anos para concretizar oito mil quilómetros dessa rede primária. A nossa intenção é que no final destes quatros anos esteja toda ela concluída. É esse o grande objectivo do Governo e para isso já tem o financiamento e o planeamento feito.
Voltando à questão das limpezas. No ano passado houve críticas, multas por falta de limpeza a contra-relógio que afinal ainda não eram bem multas… O que foi corrigido em relação ao processo do ano passado? Este ano as multas vão ser mais a sério?
Estamos a fazer cumprir a lei. É a primeira vez que esta lei é cumprida. No passado, a lei existia e não era cumprida. Em segundo lugar, no ano passado tivemos 6000 infracções com multa. Aquilo que pretendemos não é que haja multas. É fazer um trabalho de sensibilização das pessoas e dos municípios para que concretizem o grande objectivo de fazer a limpeza. Por isso mesmo fizemos a publicação da carta de freguesias prioritárias. Pela primeira vez sabemos exactamente quais são os pontos negros onde devemos intervir. É nessas freguesias que devemos reforçar a fiscalização.
Vamos passar para a questão da propriedade. Fazia parte da reforma inicialmente apresentada pelo Governo a criação de um banco de terras que não foi possível aprovar no Parlamento devido à oposição do PCP. Como é que foi contornada esta limitação?
Esta é a questão mais importante que temos hoje para debater em Portugal. O país tem que debater a propriedade e o valor social da terra. O Governo já iniciou esse debate. Pela primeira vez no país estamos a cadastrar e a conhecer quem são os proprietários em Portugal. 400 mil proprietários. Nós queremos conhecer esses proprietários. Em segundo lugar, definimos na legislação saída na semana passada a unidade mínima de cultura. O que é a unidade mínima de cultura? Qualquer partilha de terras não pode ser inferior a essa unidade mínima. Portanto, estamos a condicionar com isso aquilo que é o regime sucessório.
E qual é essa unidade mínima?
A unidade mínima varia de território para território. Onze hectares no Alentejo, onde existe grande propriedade, quatro hectares no Norte. É feito a partir das comunidades intermunicipais mas o referencial é este. Entre quatro e 11 hectares como unidade mínima de cultura. Temos que evitar a todo o custo o fracionamento da terra.
Como é que se consegue fazer isso com as partilhas?
A partir de agora, sempre que haja uma partilha, a unidade mínima tem que ser preservada. A unidade mínima passa a ser o referencial da região em termos de propriedade. Para além disso, estamos a apoiar a anexação de propriedade. Também na mesma legislação vamos dar benefícios fiscais àqueles que querem agregar propriedade.
Mas ao criar essa unidade mínima não corre o risco de implosão no mundo rural?
Pelo contrário. Temos isso já na agricultura e foi um instrumento essencial para que ganhássemos dimensão na propriedade agrícola. É o mesmo que queremos fazer na floresta. E é importante dar dimensão à propriedade florestal. A terceira questão em que estamos a trabalhar é a ideia de separar a gestão da posse da terra. Nós temos muitos proprietários que hoje já não gerem a sua propriedade e não querem fazer essa gestão. Podem agora entregar a responsabilidade a uma empresa que se constitua para fazer essa gestão. Estamos a promover a criação de empresas que façam a gestão separando-a da propriedade. As unidades de gestão florestal vão nesse sentido. Existem as primeiras 28 unidades de gestão em aprovação e, portanto, é um primeiro movimento.
E as terras sem dono?
Nós entendemos que não deve haver terra de ninguém. Não deve haver espaços vazios no território não geridos. Encontrámos um mecanismo de identificação daquilo que é a terra sem dono. Haverá 180 dias, depois de publicitado pelo Instituto de Registo Notarial, para se saber se aquela terra tem ou não tem dono, no quadro do grande esforço de cadastro que se está a fazer a nível nacional. E a partir daí passa para a posse da nova empresa pública florestal. O Estado vai assumir a gestão das terras sem dono.
Vai nacionalizar as terras?
É preciso dizer que o dono pode surgir sempre. Tem 15 anos, segundo o Código Civil, para poder aparecer.
E esta solução resolve o problema? Não vão tentar de novo aprovar o banco de terras?
Esta solução, nesta fase, resolve uma parte do problema. Uma parte importante do banco de terras era colocar as terras do Estado sob gestão desse banco e disponibilizá-la para entidades privadas que quisessem fazer essa gestão. Esta componente não está aqui.
Tem esperança que um próximo Governo tenha condições para resolver a outra parte?
Tenho acima de tudo esperança que toda esta reforma tenha continuidade. É preciso que haja um grande compromisso nacional relativamente à questão florestal. Mas esse compromisso não pode ser apenas com os partidos políticos, tem que ser também com a sociedade. Temos vindo a trabalhar com os agentes do sector.
O Estado tem capacidade para tratar de todas estas terras? É que durante muito tempo ouvimos dizer que o Estado também tinha as suas terras ao abandono…
Nós hoje temos, de facto, uma visão nova. Foi preciso aquele momento marcante para percebermos que temos que virar a página. A forma que temos vindo a encontrar para pôr em marcha a nossa estratégia passa primeiro por valorizar o regime florestal, a área pública, as matas públicas e os baldios, aquilo que é área comunitária. Essa resolução do Conselho de Ministros coloca 18 milhões de euros para nos próximos quatro anos podermos gerir bem as matas públicas. Já não há desculpa de não haver financiamento para uma boa gestão. Em segundo lugar, vamos assinar no início de fevereiro aquilo os contratos-programa sobre os baldios. Vamos capacitar as áreas comunitárias que existem e para além disso vamos incutir a ideia da criação de agrupamentos de baldios. Sempre a ideia de que é preciso juntar, dar escala, para fazer uma melhor gestão. Vamos colocar técnicos nos baldios para apoiar a gestão e vamos dar condições para se fazerem acordos tripartidos. Está no protocolo do contrato programa que vamos assinar no dia 1 de fevereiro. O que é o acordo tripartido? É o compromisso por parte dos baldios que para além do ICNF [Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas] vai ter que se encontrar uma terceira parte que ajude a gerir o território. Essa terceira parte podem ser os municípios, uma empresa industrial. A indústria tem um papel fundamental.