Às vezes, vale a pena revisitar algumas reflexões antigas para avaliarmos o que foi ou não foi feito, se as promessas ou as expetativas foram efetivamente cumpridas. Mas, não raras vezes, deparamo-nos com a desilusão (ou angústia) de vermos que as contradições de algumas políticas públicas anulam a resolução dos problemas, criando a perceção de que nada se resolve e de que os temas se arrastam, à espera de melhores dias ou do momento político certo. Contudo, todos já percebemos que o “empurrar com a barriga” não é a melhor postura.
Vem isto a propósito de alguns dossiês com impacto na agricultura e no agroalimentar e que terão naturalmente consequências para os consumidores. São dossiers que têm de ser revistos nesta legislatura e, muito provavelmente, terão influência nos processos de decisão em Bruxelas, tendo em conta que ficou oficialmente selado, esta semana, o início do alargamento da União Europeia à Ucrânia e à Moldova, alargando (e bem) o leque atual de candidatos.
Nestas tempestades que se avizinham ou se adivinham (?) não falaremos nem das eleições no Reino Unido, que, tudo indica, conduzirão a uma maioria absoluta dos trabalhistas, que não sabemos se poderá reabrir a discussão do Brexit, nem em França, com a provável vitória do partido de Marine Le Pen. O que se sente é uma profunda preocupação na sociedade francesa e os resultados que saírem da decisão popular, perfeitamente legítima, não deixarão de ter leituras e consequências para a Europa, numa altura em que se escolhem os mais altos cargos europeus, uma nova Comissão e um Parlamento Europeu mais fragmentado, talvez mais realista.
Nesta perspetiva, revisitámos umas Notas da Semana de 23 de junho de 2023, intituladas “Os ventos da Suécia e o trio que se segue: expetativas para os próximos 18 meses?”. No contexto do final da presidência da Suécia, tentávamos projetar nessa altura o que poderia marcar as presidências seguintes, desde logo a de Espanha e da Bélgica, bem como a da Hungria, que vai liderar os destinos da Europa neste semestre, a partir do próximo dia 1 de julho.
Em termos globais, Espanha foi uma (boa) surpresa, avançou no dossier das Novas Técnicas Genómicas (NGT, na sigla inglesa), deixando à Bélgica um excelente documento de trabalho e de reflexão. Deixou igualmente um outro documento de grande relevância, pese embora tenha passado despercebido, relativo à Estratégia de Autonomia da União Europeia (Open Strategy Autonomy), de que aqui temos falado.
A Bélgica teve uma presidência bastante esforçada, enfrentou desde logo os protestos dos agricultores e foi “forçada” a mudar algumas regras da PAC. Além disso, tentou fazer o que foi possível na desflorestação. Nas NGT, não obstante a posição de neutralidade, porque existem divergências internas nas regiões belgas, procurou encontrar soluções de consenso, manteve diversas reuniões com a Indústria, e negociou o novo acordo com a Ucrânia. Vai ainda ter de lidar com as tensões nas relações da União com a China, as quais tendem a escalar em diferentes áreas de negócios, dos automóveis às telecomunicações, com o setor alimentar, do qual fazemos parte, como moeda de troca das retaliações.
Na desflorestação, pese embora tudo aquilo que aqui temos escrito, insistindo-se no adiamento, mas sem respostas concretas, o cenário provável é que a legislação entrará em vigor a 1 de janeiro de 2025. Aliás, já estamos a trabalhar com as autoridades oficiais (ICNF e DGAV) com essa perspetiva, fazendo o melhor que é possível para responder a dúvidas e incertezas, desde logo de Bruxelas. Ao que parece, as pressões das ONG são enormes, mas as evidências de perturbações nos mercados, muito para além da soja, são reais e tendem, infelizmente, a ser desvalorizadas por quem decide.
O novo acordo com a Ucrânia, que impõe tarifas no milho e noutros produtos, desde que sejam ultrapassados os níveis médios históricos, é igualmente uma incerteza, quando faltará importar cerca de um milhão de toneladas, segundo algumas fontes, para que sejam tomadas medidas no caso do milho. A imposição das tarifas é provável, até para atenuar as tensões com os agricultores dos países vizinhos (Polónia, Eslováquia, Hungria), mas não se conhece ainda a sua amplitude. Seja qual for, não deixará de impactar os preços de mercado.
Nas relações UE/China, como é sabido, na sequência da imposição das tarifas pela União Europeia sobre os veículos automóveis, temos agora as eventuais retaliações dos chineses sobre a carne de porco, bem como investigações anti-dumping. O mesmo já tinha acontecido na alimentação animal, da parte da União, com a lisina, um aminoácido da maior importância, cujo processo tenderá a arrastar-se. Recorde-se que a China é um mercado relevante para as exportações europeias de carne de porco (Espanha) e, apesar de tudo, para Portugal. Não tanto como no passado recente, mas as consequências para o mercado europeu e nacional de eventuais bloqueios, com um efeito dominó, são facilmente imagináveis.
Por último e não menos importante, as NGT. Não existindo acordo entre os Estados-membros, apesar de uma larga maioria defender a proposta da Comissão, este dossiê deverá transitar para a presidência da Hungria. Antecipa-se como muito provável que nada aconteça, dada a sistemática oposição daquele país a tudo o que está ligado à biotecnologia na agricultura. Vamos perder pelo menos mais seis meses e arrastar as discussões, negando aos agricultores o direito a uma ferramenta que a Comissão reconhece que representa inovação, ciência, conhecimento e contribui para a sustentabilidade. Teremos, assim, mais uma desvantagem competitiva face aos nossos concorrentes no mercado mundial e incorreremos no sério risco de importarmos eventos autorizados noutras origens e não aprovados na Europa.
Temos aqui quatro exemplos de potenciais disrupções de abastecimento, em grande parte devido a incoerências, contradições, populismos ou oportunismos políticos.
Tudo isto pode colocar em causa a segurança alimentar. É fundamental que os decisores informem os cidadãos, produtores e consumidores, justificando estes impactos e as consequências, não culpabilizando os diferentes atores na cadeia agroalimentar.
No dia 26 de junho, tive a oportunidade de participar oficialmente, na qualidade de perito de Portugal na NATO para as questões de segurança alimentar, numa sessão levada a cabo pelo Conselho Nacional de Planeamento Civil e Emergência (CNPCE), sobre a Resiliência das Cadeias de Abastecimento. Gostaria de aproveitar publicamente esta oportunidade para agradecer ao GPP e ao Ministério de Agricultura, designadamente aos meus colegas Eduardo Diniz e Francisco Caldeira, o convite para este lugar na NATO, que muito me orgulha. Só espero estar à altura das responsabilidades e expetativas.
Parabéns ao CNPCE pela iniciativa. De facto, a resiliência das cadeias de abastecimento é um tema que tem de ser levado a sério pelos nossos representantes e pela sociedade, sobretudo neste contexto de instabilidade global em que vivemos, porque necessita de coerência e de ações governativas integradas, uma abordagem holística e um clima de diálogo aberto entre entidades públicas e privadas.
Numa altura em que precisamos de estabilidade e previsibilidade, os quatro exemplos referidos mostram que as políticas europeias estão longe de ser transparentes e percetíveis, e ameaçam cada vez mais a resiliência das cadeias de abastecimento, gerando novos problemas para a (in)segurança alimentar e dos cidadãos, que a NATO e a Emergência Civil têm de, a posteriori, resolver.
Vale a pena pensar nisto porque a todos interessa.
As tempestades já estão bem à nossa porta!
Jaime Piçarra
Secretário-Geral da IACA
Fonte: IACA
Uma política ambiental mais agrícola? – Jaime Piçarra – Notas da semana