O relatório “Restaurar para prevenir – Proposta ibérica da WWF para promover paisagens mais resilientes aos incêndios”, publicado em julho de 2024, posiciona o restauro ecológico como uma oportunidade para prevenir os grandes incêndios que têm afetado a zona mediterrânica, nomeadamente Portugal e Espanha.
Os dois países vivem realidades semelhantes, “em que todos os problemas se conjugam”, refere o documento, apontando desafios e tensões simultâneas, como as condições climatéricas muito adversas, as secas persistentes, as zonas florestais frágeis e sujeitas a grandes pressões, assim como uma paisagem florestal com falta de gestão e falta de pessoas.
O despovoamento das zonas rurais, o envelhecimento das suas populações, a ausência de políticas sérias de gestão do território, o abandono da agricultura e pecuária em regime extensivo de pastoreio, a reduzida gestão florestal e o aumento da área florestal abandonada são fatores que contribuem para “uma paisagem homogénea, altamente inflamável, suscetível a incêndios muito perigosos, em que os serviços dos ecossistemas e a biodiversidade estão comprometidos”.
“Estes incêndios extremos são o resultado de termos virado as costas ao meio rural”, pode ler-se em “Restaurar para prevenir” – editado em Portugal e em língua portuguesa pela ANP |WWF (a ANP – Associação Natureza Portugal representa o World Wide Fund for Nature no nosso país), referindo-se a fogos de grande dimensão e intensidade que afetam pelo menos 500 hectares.
Embora o número anual de incêndios em Portugal tenha diminuído quase para metade (49% em média) entre 2013 e 2022 – refere o documento, baseando-se em dados do ICNF – Instituto da Conservação da Natureza – a área ardida não desceu ao mesmo ritmo, devido a estes incêndios de grande dimensão (que afetam 500 ou mais hectares), em que arde mais território. Representam apenas 0,15% do total em Portugal, mas “são os mais destrutivos e impossíveis de extinguir devido à sua magnitude e intensidade”. Em Espanha representaram 0,23% do total entre 2014 e 2023.
Restaurar para prevenir: restauro ecológico é mais do que reflorestação
Considerando esta realidade e o facto de a região mediterrânica ser uma das mais vulneráveis aos efeitos das alterações climáticas, o restauro ecológico é para a ANP | WWF uma oportunidade a não perder para a prevenção de grandes incêndios.
No entanto, importa compreender o conceito de restauro ecológico e saber que ele não se resume às atividades de reflorestação, a que muitas vezes tem sido reduzido.
O restauro ecológico é definido como o processo de auxílio à recuperação de um ecossistema que tenha sido degradado, danificado ou destruído, uma definição baseada no contributo da SER – Society for Ecological Restoration, em 2004. No caso das florestas, o desafio de restaurar para prevenir incêndios passa, segundo o relatório da WWF, por:
- Criar uma paisagem diversificada, sustentável e rentável para resistir a futuros impactes;
- Restaurar as funções das florestas para que cumpram o seu papel na regulação do clima, fornecendo recursos e proteção contra inundações, e reciclando água e ar de qualidade;
- Melhorar a qualidade ecológica das áreas florestais, privilegiando as florestas autóctones, de diferentes espécies e idades, favorecendo a biodiversidade e a variedade de habitats;
- Promover a diversidade na utilização das massas florestais como base da atividade económica nas zonas rurais.
Onde e como atuar para fazer do restauro uma ferramenta de prevenção?
Face à limitação de recursos para atuar nas muitas zonas degradadas existentes, as áreas a restaurar devem ser definidas de forma participada (acordo social), com objetivos coincidentes com aqueles que estão definidos à escala da paisagem e segundo critérios ambientais e socioeconómicos consensuais. E a partir daí estabelecer prioridades.
“Intervindo em 10-15% da paisagem, é possível aumentar a resiliência do território no seu conjunto”, refere o documento.
Entre estas zonas prioritárias devem constar as de elevado risco de incêndio, em termos de frequência e perigosidade, assim como os locais cuja fraca acessibilidade pode impedir a capacidade de combate e extinção. Da mesma forma, devem considerar-se as zonas mais deprimidas economicamente ou com mais desemprego, para ir ao encontro das necessidades das comunidades.
Outro ponto central é definir que ecossistema queremos após o restauro. Este conceito de “ecossistema de referência” deve antecipar as tendências climáticas mais prováveis para a zona em questão e seguir uma estratégia que considere o seguinte conjunto de princípios-chave:
– Diversificar, promovendo florestas de maior complexidade e integridade ecológica, com a criação de mosaicos florestais de diferentes espécies, com descontinuidade horizontal e vertical e diversidade também na sua estrutura etária;
– Promover a existência de florestas maduras, facilitando o avanço da sucessão natural da vegetação e acelerando os processos de maturação, apoiando uma estrutura que favoreça o desenvolvimento de nichos de biodiversidade e o desenvolvimento de árvores produtivas a longo prazo;
– Integrar a floresta com a agricultura e a pecuária extensiva, criando paisagens agroflorestais (com apoio da silvicultura, uso do fogo e herbivoria) que promovam a heterogeneidade da paisagem, integrando sistemas agrícolas de elevado valor natural, pastagens e pequenas culturas diversas (castanheiro e cerejeira, por exemplo) que funcionem como corta-fogos produtivos;
– Respeitar o regime do fogo e o seu papel ecológico na dinâmica dos incêndios florestais no Mediterrâneo. Neste caso, a gestão do risco deve conciliar um regime sustentável de incêndios de baixa intensidade, com fogos geridos e queimadas prescritas.
– Inverter o abandono das florestas, intervindo e recuperando áreas que se encontram desprezadas e fazê-lo de forma participativa com as partes interessados, para criar florestas mais diversificadas e bem-adaptadas aos locais em causa e às pressões climáticas;
– Praticar uma silvicultura mais próxima da natureza, com práticas que conciliem produção, conservação e redução de vulnerabilidade a incêndios (limpezas seletivas e desbastes de baixa intensidade, entre outras) e que privilegiem a produção de madeiras de qualidade – castanho, carvalho, nogueira e cerejeira são dados como exemplo –, orientadas para um retorno mais elevado, embora mais distante.
Recomendações para o restauro preventivo
Elaborar um “Plano Nacional de Restauro” ambicioso, participativo e integrado com o ordenamento à escala da paisagem, mas exequível e bem delineado para dar resposta às principais perturbações. Este é um dos passos recomendados em “Restaurar para prevenir” e o documento reforça também a importância da Lei Europeia do Restauro da Natureza (cujo regulamento foi aprovado em julho de 2024), traçando as medidas para restaurar 20% das zonas terrestres e marítimas da União Europeia até 2030 e de todos os ecossistemas que necessitam de restauro até 2050.
Além de determinar prioridades de atuação em pelo menos 15% dos ecossistemas degradados, incluindo os de elevado risco de incêndio, devem ter primazia também a recuperação e conservação de habitats, a conetividade ecológica e a prestação de serviços dos ecossistemas.
Para que restaurar para prevenir seja uma estratégia eficaz, os governos têm de assegurar as medidas e instrumentos financeiros necessários, potenciando, com transparência e eficiência, os financiamentos disponíveis a nível europeu – desde o Fundo Europeu Agrícola de Desenvolvimento Rural e Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional (FEADER e FEDER) aos programas de apoio ao conhecimento e pesquisa.
Em paralelo, defende a aposta na prevenção de incêndios e a aceleração do ritmo a que decorre o Plano Nacional de Gestão Integrada de Fogos Rurais.
Na análise que faz sobre as causas dos incêndios na península Ibérica, o documento chama ainda a atenção para a elevada percentagem que têm mão humana. Por exemplo, os 28% devidos ao incendiarismo e os 40% relacionados com queimas e queimadas (nos 10 anos em análise), dados considerados “alarmantes apesar de todas as campanhas de sensibilização”. Apenas 2% dos incêndios ocorridos em Portugal e 5% dos deflagrados em Espanha têm causas naturais.
Entre as suas recomendações, está, por isso, a necessidade de:
– Conhecer causas e motivações dos incêndios para encontrar respostas mais adequadas;
– Continuar a sensibilizar e educar para os riscos, incluindo o tema nos currículos escolares;
– Promover a prevenção social, oferecendo alternativas à utilização indiscriminada do fogo como instrumento agropecuário;
– Melhorar a eficácia na identificação dos autores dos crimes, bem como na aplicação efetiva e exemplar de sanções e penas dissuasoras.
O artigo foi publicado originalmente em Florestas.pt.