Entrevista Em Alta Voz a Pedro Matos, coordenador de emergência na agência da ONU.
Engenheiro do território transformado em profissional humanitário com vasto percurso internacional. Pedro Matos trabalha frequentemente com o Programa Alimentar Mundial. Do Darfour ao Bangladesh, de Moçambique ao Mali, do Quénia à Ucrânia, este português – coordenador de emergência na agência da ONU que recebeu o Nobel da Paz faz esta sexta-feira um ano – é um profundo conhecedor do modo como o mundo pode alimentar mais gente. E bem necessário é. A pandemia e a guerra na Ucrânia fizeram aumentar de forma dramática as necessidades alimentares no planeta: “antes da pandemia, os 350 milhões de pessoas (em situação alimentar mais grave) eram 130 milhões”. O grande salto da fome no mundo “foi com a contração da economia mundial”. No total, assegura, Pedro Matos, “são 850 milhões de pessoas que ou já cortaram na sua capacidade de se alimentarem ou já não podem mesmo, de todo, alimentar-se”.
Como vê o atual momento de emergência alimentar no mundo, face ao que tem estado a acontecer na Ucrânia desde 24 de fevereiro?
Com alguma preocupação, não só com a Ucrânia, mas também ainda com a Covid. O mundo estava a fazer grandes progressos no sentido dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, nomeadamente da fome-zero. Afastou-se, entretanto, muito da fome-zero, mas também de imensos outros Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, que regrediram várias décadas. Mas o da fome-zero regrediu consideravelmente. Neste momento, temos oito mil milhões de pessoas no mundo e 10%, 800 milhões, estão em insegurança alimentar, em menor ou maior grau. Desses 800 milhões, 50 milhões estão à beira da fome e em risco de morrerem nas próximas semanas ou meses.
No Programa Alimentar Mundial há uma escala que vai de um a cinco para classificar a situação alimentar das pessoas. Como é que se explica?
Um e dois é normal, significa que são pessoas que se conseguem alimentar, o três são pessoas que começam a não conseguir comprar tudo aquilo que costumavam ou a ter de saltar refeições. O quatro significa que as pessoas têm de vender bens, podem ser joias ou animais de criação, podem ter de começar a vender o corpo – a prostituição é um problema muito grave em várias regiões do mundo -, e o cinco são pessoas que já não têm nenhum mecanismo de segurança, sofrem de má nutrição severa e estão à beira de morrerem nas próximas semanas ou meses. E o mundo tem 50 milhões de pessoas nessa categoria cinco, tem 300 milhões de pessoas na categoria quatro, e mais 500 milhões na categoria três. No total, cerca de 850 milhões de pessoas já começaram a cortar na sua capacidade de se alimentarem ou já não conseguem de todo fazê-lo.
Em que países estão esses 50 milhões que já se encontram no nível cinco, ou seja, que já passam mesmo fome?
Estão muito espalhados e há alguns países que têm regiões muito más e outras que não são tão más, é quase um mosaico. Temos o Afeganistão numa situação muito dramática – estava muito dependente de ajuda internacional e com a tomada de poder dos talibãs muitos dos fluxos de ajuda foram cortados. Muito daquilo que era a garantia da segurança alimentar ficou afetado. O Iémen também continua numa situação terrível: mais de metade da população do país está nesta situação.
Mas aí há guerra…
Sim, aí há guerra, mas mesmo nas zonas onde não há, por exemplo, se uma zona tem um mau ano agrícola ou um período de insegurança que impedem as pessoas de plantarem, o facto de haver guerra – e há cerca de 30 frentes ativas -, impede que os mercados reabasteçam e façam trocas entre eles. Mesmo que a guerra não afete todas as partes de um país diretamente, afeta indiretamente a capacidade de os mercados escoarem. E além do Afeganistão e do Iémen, também a República Democrática do Congo está numa situação grave.
Sobretudo onde a guerra continua sistematicamente é onde há mais fome?
Sim, onde a guerra continua e, neste momento, também o Corno de África, pois toda a Somália, o leste da Etiópia e o leste do Quénia têm a maior seca desde os Anos 80 e do Live Aid e do We Are the World. Aí já temos cerca de 350 mil pessoas na categoria cinco.
Eram precisos dez Bob Geldof hoje…
Eram precisos dez Bob Geldof nesta altura, mas nessa época morreram muitas centenas de milhares de pessoas e, neste momento, estamos na mesma situação no Corno de África.
No Congo, a região dos grandes lagos é muito fértil e demograficamente é muito dinâmica, precisamente por ser planalto e de agricultura fácil. Isto significa que, muitas vezes, não é a escassez da natureza que faz o drama, é mesmo a ação humana…
É. E no caso do Leste do Congo têm a infelicidade de terem sido dotados de muitos recursos minerais, além dos recursos férteis da agricultura. O mundo tem mais do que comida suficiente para se alimentar. Isto é tipicamente um problema de onde é que essa comida existe e a que preço está disponível. Não é um problema de escassez de capacidade produtiva.
Nesta altura, o Programa Alimentar Mundial consegue alimentar a mesma quantidade de pessoas que alimentava o ano passado?
Os doadores têm continuado a aumentar as suas contribuições para o Programa Alimentar Mundial, mas as necessidades é que aumentaram a um ritmo muito maior. Antes da pandemia, os 350 milhões na categoria quatro e cinco, eram 130 milhões.
Estamos a falar de necessidades graves de alimentação que aumentaram de 130 milhões de pessoas para 350 milhões de pessoas.
O grande salto foi com a pandemia. No espaço de dois anos, com a grande retração da economia mundial, os países começaram a voltar-se para dentro e houve muito menos trocas comerciais, o que aumentou imenso os preços. Houve uma grande retração da economia mundial que deu o grande salto de 130 milhões para 270 milhões e a guerra na Ucrânia, nomeadamente pela falta de cereais ucranianos e russos e pela falta de fertilizantes russos, deu o novo salto para os 350 milhões. No entanto, achamos que ainda não vimos o pico desta curva que deve chegar algures em 2023.
É expectável que ainda aumente?
Sim.
Esta guerra entre a Ucrânia e a Rússia, além de todos os dramas associados, tem esta particularidade de serem os dois piores países do mundo para estar em guerra, na medida em que o conflito afeta seriamente a segurança alimentar mundial. A própria guerra e as sanções associadas têm um impacto global?
Sim, o impacto é global. O Programa Alimentar Mundial das Nações Unidas comprava metade dos cereais à Ucrânia. porque eram os mais acessíveis e permitiam-nos esticar os nossos euros. Só ir buscar a outras fontes de cereais está a custar-nos mais 70 milhões de euros por mês. O problema é que todos os países para os quais a Ucrânia e a Rússia exportavam também têm de ir à procura de cereais nas mesmas fontes. Portanto, temos uma distorção da curva da oferta e da procura em que toda a gente está a tentar ir buscar cereais.
O Programa Alimentar Mundial está a tentar concorrer, para comprar a preços razoáveis, com os próprios mercados?
Sim, e isto é só o PAM, porque havia países que estavam quase 100% dependentes de cereais da Ucrânia e da Rússia.
O Líbano é um desses casos?
O Líbano, a Eritreia, a Tunísia, todos estes tinham mais de 50% das suas importações de cereais dependentes da Ucrânia e da Rússia.
Isso significa que mesmo em países onde não estejamos a falar de situações na escala quatro ou cinco, devido à debilidade de abastecimento, pode haver pessoas a entrar no nível três?
Sim. O que achamos, e porque esta é uma escala que vai piorando, é que vai haver mais pessoas a entrarem no total dos 800 milhões que englobam a escala três, quatro e cinco, vai haver mais pessoas a entrar nos 500 milhões do nível três, e muita gente a passar do nível três para o quatro. E naturalmente muitas pessoas que estão na escala quatro vão passar a estar na cinco, o que é muito grave, porque são pessoas que estão já em fome e estão à beira da morte.
Há pouco referiu os oito mil milhões de pessoas no mundo, número que a própria ONU oficializou há uns dias, mas também disse que não há falta de capacidade de produção de alimentos no mundo. O problema então é que até há países que produzem em excesso, que produzem muito mais até do que a sua população necessita, e como não há justiça na distribuição – seja pela natureza ou pela eficácia de governação -, o mercado global tem de funcionar, se não haverá sempre escassez algures no mundo?
Sim. Por um lado, há essa questão do funcionamento do mercado e elevar as pessoas que estão em situação de pobreza para uma situação em que possam comprar a comida que existe nos mercados. Porque em muitos países, não é uma questão de disponibilidade de comida, é uma questão do preço da mesma. Há também um grande problema de comermos todos muita carne, porque muitos dos cereais que podiam estar a ser usados para alimentar pessoas, estão a ser utilizados para alimentar gado. Para produzir um quilo de bifes, precisamos de 50 quilos de trigo, portanto, muito deste trigo podia ser usado diretamente para alimentar as pessoas. Além de que a maior parte das pessoas do mundo que não tem dinheiro para comprar carne, poderia comer este trigo. Mesmo com a situação que temos hoje, podíamos alimentar toda a gente, e se todo o mundo fizesse um esforço para consumir um bocadinho menos de carne, a quantidade de cereais disponíveis para alimentar as pessoas seria mais do que suficiente. Não é um problema de capacidade produtiva do mundo, é um problema de onde é que a comida existe, onde está a ser usada, e se está a chegar a preços acessíveis às pessoas que mais precisam.
É uma questão de educação? A próxima geração será mais capaz de comer menos carne e contribuir para uma melhor distribuição de recursos no mundo?
Penso que sim. Penso que muitos de nós ainda estamos com a cabeça na geração em que comer carne era um luxo e, agora, que demos o salto para podermos comer carne, ainda não nos apercebemos de que, lá porque podemos, não temos de comer. E eu também sou culpado disso, tenho tido mais cuidado e tentado reduzir o meu consumo de carne, especialmente de vaca que tem uma […]