Depois de há algumas semanas aqui ter refletido sobre a conjuntura das matérias-primas e os impactos nos mercados, com destaque para os produtos de origem animal, que intitulei “Tempestade Perfeita”, é importante regressar hoje ao tema, que continua bem atual e que, ao que tudo indica, assim vai continuar no curto prazo.
Hoje realizou-se mais uma edição do Colóquio do Milho – a ANPROMIS está uma vez mais de parabéns pela excelente organização – onde interveio o Presidente da IACA sobre esta temática. Tivemos ainda o prazer de intervir hoje mesmo num Grupo de Diálogo Civil de Culturas Arvenses, em representação da FEFAC, para além de termos participado na Task Force Covid-19 desta mesma entidade que acompanha e monitoriza o impacto da pandemia e a conjuntura dos mercados do setor.
Além das referências nos fóruns em que participámos, o tema das matérias-primas também é oportuno, pois estamos a fechar as negociações da reforma da PAC (em maio?) para entrar em vigor a partir de 2023, a discutir o PEPAC e, em Bruxelas e nos diferentes Estados-membros, debate-se o Plano de Contingência, que, por causa da nossa crónica dependência, deve integrar a questão dos stocks estratégicos, como há anos vimos reclamando. Aliás, é de esperar uma comunicação da Comissão sobre este plano de resposta às crises em novembro deste ano, que deverá integrar as lições da COVID -19 e ser consistente com os objetivos do “Farm to Fork” e dos sistemas alimentares sustentáveis..
Como todos sabemos, um país dependente é naturalmente vulnerável, fica mais exposto e a pandemia obriga-nos a pensar na segurança do abastecimento (food security),
É evidente que a pandemia expôs a dependência da União Europeia à China que, pasme-se, foi e continua (continuará?) a ser o motor da economia (e da geoestratégia) a nível mundial.
No caso da alimentação animal, temos os microingredientes, vitaminas, aditivos e aminoácidos que têm sido bastante afetados pelos custos da logística ou pelo encerramento de empresas devido a situações de confinamento.
As preocupações da IACA com o agravamento dos custos da alimentação mantêm-se atuais, mais do que nunca, e continuamos a chamar a atenção da Ministra da Agricultura – na dupla qualidade de responsável pela agricultura nacional e de Presidente do Conselho Agrícola neste semestre – para as fragilidades e consequências para toda a Fileira. Em algumas situações, já nem é apenas a questão dos preços, mas a escassez e disponibilidade de algumas matérias-primas como a colza ou o girassol que colocam em causa eventuais cumprimentos de contratos.
O que hoje foi confirmado nos eventos que referi, para além da tendência altista dos preços das principais matérias-primas que subiram em torno dos 40%, é que tal ficou a dever-se a quebras de produções, a restrições e a taxas à exportação da parte de alguns países, ao aumento da procura, e também à manutenção das retaliações entre a União Europeia e os EUA. Em resumo: as tensões não estão resolvidas e juntam-se ao efeito China que têm vindo a comprar grandes quantidades de milho e soja no mercado mundial, não só para acumular stocks para o médio e longo prazo, mas para satisfazer as produções de suínos e frango, no muito curto prazo.
Apesar do regresso de eventuais surtos de peste suína, são grandes os investimentos de empresas chinesas, como a Huawei, no chamado agronegócio, concretamente na suinicultura, que tal como no setor avícola, tenderá a crescer nos próximos anos.
Quando olhamos para as perspetivas nos próximos 5 anos, concluímos que os stocks mundiais vão continuar baixos, as produções, em geral, poderão estar em alta, mas a procura tenderá a aumentar pela via da alimentação humana, animal ou dos biocombustíveis. Assim, o motor China, que não sabemos por quanto tempo se irá manter, mas que acreditamos que vai continuar a ser o grande impulsionador mundial, deverá manter os preços das matérias-primas numa tendência altista.
O mais preocupante é que toda esta conjuntura é bastante frágil e bastará a existência de problemas climatéricos ou perturbações políticas ou económicas que poderão ocorrer no pós-pandemia, em particular em países como o Brasil ou a Argentina, para criar ainda mais incerteza e instabilidade.
Ao colocarmos estas questões em Bruxelas respondem-nos que os instrumentos são limitados, apenas é possível monitorizar a situação nos produtos de origem animal e atuar, se necessário. A grande questão é repassar os custos e agravamentos ao longo da cadeia alimentar.
Entretanto, a China é ao mesmo tempo um grande importador de carnes do mercado europeu, o que tem permitido um equilíbrio do mercado interno e em Portugal, travando maiores quebras. Sem esta saída, face à retração do consumo nacional, a situação era bem mais dramática.
Os produtores agrícolas, que poderão vir a beneficiar de preços altistas nas produções de cereais, bem mais remuneradores que os dos últimos anos, tenderão a aumentar áreas e produções e a reduzir a nossa dependência, mas há que olhar igualmente para os custos de produção, para os fitofármacos que não existem, para os OGM que não são aprovados e para os instrumentos que lhes permitirão competir no mercado mundial e aprovisionar, com preços competitivos, o mercado português.
No entanto, o que precisamos é de uma equidade entre a produção vegetal e a produção animal e, no contexto em que vivemos e no que temos pela frente, vamos ter de aumentar os preços dos produtos de origem animal, sob pena de termos um colapso em toda a Fileira e uma crise alimentar, para além da sanitária e socioeconómica que já enfrentamos.
Não sabemos se a China irá provocar uma inflação alimentar a nível mundial e não vou entrar na discussão sobre a legitimidade de comprar todas estas quantidades no mercado mundial ou de isso acontecer numa altura em que tanto se fala de “due dilligence”, de comportamentos responsáveis ou de transparência nos negócios: nem mesmo vou questionar se deverá haver alguma intervenção ou preocupação de cariz social ou ambiental nas trocas comerciais com determinados países. Provavelmente, neste contexto, a Administração Biden não será muito diferente da anterior relativamente a alguns produtos sensíveis.
Porque defensores de um mercado aberto, temos, assim, em toda esta crise uma nova oportunidade: olhar para que tipo de consumidor poderemos ter no pós-pandemia e resolver a nossa dependência de matérias-primas essenciais, o que está diretamente ligado ao papel que queremos atribuir aos agricultores portugueses enquanto produtores de alimentos e matérias-primas para o abastecimento da agroindústria.
Nos últimos anos, demos tudo por adquirido e em especial a alimentação. A pandemia e a crise em que vivemos têm de nos levar a pensar que os alimentos poderão ser um bem escasso e que a União Europeia e Portugal podem, e devem, desempenhar um papel relevante no contexto global.
E pensar que, numa próxima crise, podemos não ter alimentos suficientes!
Jaime Piçarra
Secretário-Geral
O artigo foi publicado originalmente em IACA.