João Dinis, de origens serranas, foi durante muitos anos representante da CNA em diversos organismos nacionais e europeus. Foi ainda responsável pela Revista “Voz da Terra” e um reconhecido, intenso, dedicado e sempre presente dirigente associativo, nas ruas e na luta, junto dos agricultores e das agricultoras, em defesa da Agricultura Portuguesa, em particular da pequena e da média agricultura e da Agricultura Familiar. Actualmente integra o Conselho Nacional da CNA e é um pequeno produtor florestal.
A produção agrícola sustentável e a utilização de forma mais eficiente dos recursos naturais é uma necessidade actual. Quais devem ser os pressupostos para os investimentos futuros?
Para a Agricultura Familiar há sobretudo os regadios tradicionais, os estímulos à construção de pequenas charcas de reservatórios de água, de poços tradicionais. Isso é uma vertente prioritária e muito importante, mas também é preciso regular bem os furos artesianos e medir muito bem onde é que se fazem mais barragens de maior dimensão, em que região, em que rios. Há sistemas alternativos a estas barragens, sistemas integrados de mini-hídricas, para fins múltiplos e que podem servir para regadio, produção de energia e voltar a servir para a pequena indústria agroalimentar, por exemplo os moinhos. Eu ainda tenho o registo do que era passar umas horas dentro desses moinhos a laborar, o barulho da mó e aquele cheiro da farinha que vinha directamente do grão produzido aqui na zona. Hoje não é assim e nota-se, para quem tem o registo no sabor do pão, que continua a ser um alimento essencial dos portugueses. Hoje é um verdadeiro escândalo, muitas das vezes, o mau sabor do pão de fabrico industrial, através de farinhas que vem sabe-se lá de onde.
Num contexto de alterações climáticas interessa manter, ao mais alto nível, a gama de variabilidade genética de que dispomos, nomeadamente, e como falava, nos cereais. Considera que há condições para tal?
Recuperar esse registo não sei se está no futuro próximo ou não, mas é pena que se tenha perdido… tirando as experiências individuais de alguns resilientes, que deviam ser apoiados pelo Programa de Recuperação e Resiliência, como o nosso colega João Vieira que continuou a produzir sementes, grãos e farinha por forma natural e respeitadora das espécies tradicionais.
As espécies tradicionais de cereais e de floresta são espécies mais bem adaptadas à seca. Considero que o germoplasma animal e vegetal está a ser muito descurado nas instituições públicas que tiveram essa função durante décadas e que foram, entretanto, desmanteladas umas, descapitalizadas outras, o que é péssimo porque coloca Portugal na dependência de meia dúzia de grandes multinacionais que venham a deter, até no âmbito dos organismos geneticamente modificados, as patentes e depois para comermos temos de primeiro comprar a patente. E só a meia dúzia de espécies, o que restringe também a variedade, a diversificação da alimentação humana, com previsíveis más consequências para o organismo humano.
O Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) apresenta-se com um financiamento importante para Portugal e também para o sector agrícola. Como avalia a aplicação desde financiamento na vida dos agricultores e do Mundo Rural?
Ao que nos é dito, representa uma verba muito significativa em dinheiro, à partida, destinado ao nosso País. Este PRR nasce no contexto das dificuldades e dos enormes prejuízos, que os agricultores também têm tido, com a pandemia (COVID-19). Mas tem um pecado original, e não é pequeno, que foi a União Europeia a definir os principais processos e objectivos da aplicação destas verbas, mesmo das que vêm para Portugal. Há uma passagem por cima de elementos, até de defesa nossa, de Soberania nacional, que não foram respeitados, nem o Governo fez por os fazer respeitar junto da União Europeia. Mas venha a verba que vier é um avanço.
Agora a pergunta que muita gente faz é “mas tanto dinheiro onde é que ele anda?”. É uma pergunta legítima. Onde é que anda esse dinheiro? Onde é que está? Onde é que se vê a aplicação desse dinheiro? Para além daquilo que é falado, prometido, reanunciado. E essa pergunta continua sem resposta. Eu ainda não vi onde é que esse dinheiro está a ser aplicado, e prezo-me procurar manter os olhos e os ouvidos abertos.
E especificamente sobre o sector agrícola, em especial através do financiamento de projectos no âmbito da Agenda Terra Futura?
No que concerne à agricultura, um balanço a que tive acesso, onde a própria Ministra participou, já há uns tempos, fornece uma base, ainda assim, credível. É que a Ministra disse que havia já uma elevada percentagem, cerca de 85% em Junho deste ano, de verbas para projectos já aprovados. Mas vem logo a seguir um elemento muito elucidativo e preocupante, é que havia uma baixíssima execução no terreno desses projectos e daí eu continuar a perguntar onde é que anda esse dinheiro, ainda não está plantado no terreno.
Depois houve complicações, essas sim há muito sentidas, e que influenciam a baixa taxa de execução verificada até agora, o que contradita com a tal elevada percentagem de candidaturas aprovada. Houve uma grande procura [muitas candidaturas] e, entretanto, não foi reforçada a verba total e devia sê-lo. E dinamizada a execução no terreno dos projectos aprovados. Inicialmente há um adiantamento (aproximadamente 5%), que é ridículo e ineficaz. Só as grandes empresas, os grandes empresários agroalimentares ou florestais é que, dispondo de capacidade financeira própria ou de créditos na banca podem permitir-se executar um projecto destes.
O que considera importante fazer para a melhor a aplicação dos fundos?
É importante democratizar o acesso a estes fundos, o que significa melhores condições de pagamento (chamado reembolso), um aumento do adiantamento inicial e, simultaneamente, a desburocratização dos processos. A burocracia serve para eliminar no gabinete os pequenos e médios que ficam sem acesso aos projectos, logo aos fundos. É necessário potenciar o aproveitamento nacional democrático do programa de recuperação e resiliência.
Artigo publicado originalmente em CNA.