Agora que estamos a comemorar os cinquenta anos da revolução de abril, volto a um tema que me é muito caro. Refiro-me ao papel da economia criativa no que diz respeito à fusão de recursos materiais e imateriais presentes na montagem de um sistema produtivo local e regional. Como referi no último artigo para o AGROPORTAL, os geossistemas territoriais complexos são territórios-rede assentes em estruturas de missão dedicadas, muito para lá do sistema de distribuição de poderes locais e do organicismo corporativo das administrações e do patronato. Os exemplos aí referidos mostram como a economia criativa se constitui como um fator crítico na estruturação dos territórios-rede da 2ªruralidade. O enoturismo e o Alto Douro vinhateiro são, porventura, um dos melhores exemplos desta cadeia de valor que junta economia produtiva, economia criativa e marca territorial. Nela vamos encontrar a produção vitivinícola, a conservação pelos socalcos, o recreio e o lazer da visitação local e regional, a cultura da vinha e do vinho, a tecnologia digital, a produção de conteúdos e a comunicação simbólica, enfim, os terroirs vinhateiros da nossa imaginação tornados realidade material nas encostas do Douro, ou seja, a fusão entre fatores criativos e fatores produtivos levada a efeito por uma verdadeira curadoria territorial.
Ora, falar de economia criativa é falar de signos distintivos territoriais (SDT). O universo material e simbólico de uma região contém muitos SDT, muitos deles ocultos, subestimados ou ignorados. Por exemplo, o mosaico agro-silvo-pastoril e paisagístico do montado, os sítios da rede natura 2000 e as áreas de paisagem protegida, a biodiversidade, os endemismos e os serviços de ecossistema, as fontes e as minas de água, as amenidades e os percursos de natureza, as denominações de origem protegida (DOP) e os mercados de nichos, as apelações de património imaterial da UNESCO, o estatuto de reserva da biosfera, as medidas de mitigação e reabilitação, os campos e as estações arqueológicas, os monumentos, as vistas panorâmicas, os ofícios e o artesanato, as celebrações e a cultura tradicional, a literatura oral e as paisagens literárias, todos são exemplos de signos distintivos territoriais, SDT, que podem contribuir decisivamente para a economia criativa e a construção da iconografia de uma região, a sua imagem de marca impressiva territorial.
Ora, a partir desta informação bruta, simbólica e cultural, acerca da agrocultura de um território, o grande desafio que se segue, para lá das nomenclaturas estatísticas (NUTS) e das divisões administrativas, é a descoberta e promoção de uma geografia sentimental, a busca de sentido e significado, que nos devolvam o território como paisagem orgânica global, como território-ser vivo, capaz de inteligência coletiva e, portanto, de uma direção e linha de rumo próprias. É aqui, precisamente, que faz todo o sentido a construção das cadeias de valor criativas, como exemplos desse território-ser vivo e lugares privilegiados onde se revela o lado mais inventivo da economia criativa, se quisermos, uma espécie de montagem pré e pós-produção do sistema produtivo local levada a efeito por uma curadoria territorial de artes e ofícios ou, se quisermos, a tradição como um campo de inovação produtiva. O melhor exemplo deste exercício de montagem das hiperligações entre economia criativa e produtiva é aquele que Évora, capital europeia da cultura 2027, pode e deve colocar no terreno daqui até 2027.
Com efeito, com mais recursos à nossa disposição, materiais e imateriais, trata-se, agora, de montar um estaleiro de economia criativa, arquitetura e curadoria territorial em direção a um objetivo mais ambicioso, muito para lá das convencionais indústrias culturais de cariz urbano. Mais cidade no campo e mais campo na cidade é o lema fundamental do que eu costumo designar como o universo da 2ª ruralidade, que estou certo, será acelerado pela cobertura e conexão operadas pelas redes 4G e 5G e respetivas tecnologias emergentes. Neste sentido, quero crer que os territórios-rede formados pelas comunidades intermunicipais, as instituições de ensino superior e o universo associativo, constituirão plataformas made in por medida, não apenas para acolher as cadeias de valor imateriais dos SDT, mas, sobretudo, para converter e transferir esse valor para as cadeias de valor produtivo e material. Cabe, portanto, à economia criativa desenhar e explorar essas hiperligações e, dessa forma, promover um movimento consistente de atração de neorurais para os territórios do interior.
Numa aproximação mais pragmática a estas várias hiperligações dou agora alguns exemplos que podem frutificar se a curadoria dos territórios-rede for organizada de forma conjunta e coordenada dentro do espaço comunitário, intermunicipal e regional. Eis algumas iniciativas criativas que apontam na boa direção:
1) O branding territorial das denominações de origem, indicações geográficas, mercados de nicho e marcas coletivas, que pode e deve estar associado aos clubes de jovens empresários e às escolas superiores agrárias nas áreas de marketing e design,
2) As redes comunitárias de mercados locais para a pequena agricultura e a agricultura acompanhada pela comunidade (AAC), operadas pelas associações de desenvolvimento local (ADL) e que podem funcionar, por exemplo, como uma organização de trabalho comunitário e, mesmo, de campo de férias e trabalho voluntário,
3) O merchandising de produtos e lugares em estreita associação com as artes e os ofícios tradicionais, que pode ser objeto de uma ligação às escolas de artes e design e às associações comerciais locais e intermunicipais,
4) Uma rede de extensão agro rural que apoie e articule todos os projetos de desenvolvimento em ligação, por exemplo, com os serviços regionais de agricultura, as escolas superiores agrárias e as escolas profissionais agrícolas, e, dessa forma, ajude a formar os clubes de jovens empresários rurais,
5) Um conjunto de residências artísticas, culturais e científicas que possa estar associado a projetos interdisciplinares de ecologia multifuncional – solos, coberturas, água, biodiversidade, pastoreio, artes da paisagem – e que sirva para dinamizar, por exemplo, os programas de transformação da paisagem, mas, também, os estágios de investigação e a gestão de fogos florestais,
6) A construção de amenidades paisagísticas, roteiros e percursos de turismo acessível para pessoas e visitantes com mobilidade reduzida em associação com programas de envelhecimento ativo,
7) Um banco de solos e uma plataforma de arrendamento em meio rural apoiada num regime de incentivos para projetos coletivos e comunitários que conduzam, por exemplo, ao rejuvenescimento da economia rural de base municipal e intermunicipal,
8) Uma rede de cohousing para a comunidade sénior, organizada, por exemplo, no modelo condomínio de aldeia, em estreita ligação com o serviço ambulatório intermunicipal e onde as medidas de saúde ambiental e saúde alimentar apareçam sempre associadas,
9) Um programa de agroturismo e turismo rural que aumente a visitação e tenha como motivos principais para atrair os visitantes as práticas certificadas de silvicultura preventiva, agricultura biológica e modos integrados de produção, assim como modalidades alternativas de agricultura regenerativa e circular,
10) Um programa de eventos criativos e culturais de âmbito intermunicipal intimamente associado à construção dos territórios da 2ª ruralidade e aos diversos projetos e iniciativas anteriormente referidos.
Finalmente, a economia criativa da 2ª ruralidade, ao fazer convergir muitos atores locais, pode ser muito útil em áreas fundamentais como sejam as novas infraestruturas verdes de ligação cidade-campo, a agricultura em espaço urbano, as novas cadeias de bioenergia e economia circular, a inovação da ecologia funcional na prestação de serviços remunerados de ecossistema, as diversas modalidades de gestão agrupada multiprodutos e as múltiplas interfaces entre os hipermercados e os clubes de produtores, que são, afinal, a prova de um genuíno sinal de modernidade e respeito pelo património natural e cultural.
Nota Final
Um dos grandes trunfos para esta década é, justamente, o hibridismo do espaço rural, um híbrido de produção, consumo e conservação, que não só alarga os mercados de futuro como a tipologia de agriculturas AAA (agricultura, ambiente, alimentação) e a gama de produtos e serviços oferecidos. Os mercados de futuro serão um mix cada vez mais complexo de tecnologia, ecologia, economia e cultura com uma oferta conjunta de bens e serviços cada vez mais diversificada. Nesse contexto, as comunidades locais inteligentes, apoiadas em espaços de incubação e plataformas colaborativas, podem acolher projetos e empreendimentos de fins múltiplos, mas, também, empresas e start ups especializadas e, dessa forma, atrair talento criativo para o universo da 2ª ruralidade.
Aqui chegados, a economia criativa da 2ª ruralidade, perante tanta incerteza e riscos globais, permite-nos, apesar de tudo, abrir muitas portas ao futuro, pois é lá que vamos viver a maior do nosso tempo de vida útil. No mesmo sentido, não devemos recear nem os trabalhos inelutáveis de mitigação e adaptação nem, tão-pouco, a ecotopia do mundo rural e os seus universos alternativos. Mais liberdade e diversidade nas relações cidade-campo é uma das soluções em aberto, perfeitamente ao nosso alcance. Construamos, pois, criativamente, os territórios da 2ª ruralidade.
Professor Catedrático na Universidade do Algarve
Do rural tardio português até à 2ª ruralidade – O mix agro rural de fins múltiplos