Chove lá fora. Seria uma “bela” tarde de domingo se não houvesse ainda milho, uvas e outras colheitas para guardar, mas vou aproveitar este tempo livre para vos contar umas coisas, porque o milho deste ano dava um filme! O texto ficou mais comprido do que o costume, mas como hoje é domingo eu tive mais tempo para escrever e vocês tem mais tempo para ler.
Fiz as primeiras sementeiras das parcelas destinadas a milho grão entre 17 e 18 de abril, com um milho “ciclo 400” que permite uma produção razoável mas relativamente precoce. Esteve bom tempo. O milho nasceu bem e cresceu sem os ataques dos insetos do solo (roscas e alfinetes) que atacaram outras parcelas do milho para silagem semeado no início de maio.
Deixei para trás o “Campo da Bouça” (herdado do lado da minha mãe) que fica em Rio Mau, a 12 Km de distância. A estrada é boa e, se não houver engarrafamentos a passar Vila do Conde, a viagem faz-se em pouco mais de 20 minutos. Fui semear essa parcela na manhã de 28 de abril, antes de partir para a Ovibeja. Levei o semeador com um trator que tinha chegado da oficina poucos dias antes. Cheguei ao campo, liguei a tomada de força e desligou-se por erro no sensor de movimento. Tentei várias vezes. Tinha funcionado bem no dia anterior. Tentei o truque dos informáticos: desliguei o trator, esperei uns segundos e voltei a ligar. Igual. Liguei para o mecânico chefe da oficina. Ao contrário do habitual, não atendeu. Era quase meio-dia. Fui pedir emprestado um trator dos meus primos que habitam a casa dos meus avós maternos que fica ao lado do campo. Emprestaram-me o trator e ofereceram-me almoço, de que recordo umas entradas com alheira de javali, um queijo especial e uma sobremesa de salada de fruta com gelado (repeti a receita da sobremesa nos meses seguintes, sabe bem mas engorda…). Dias mais tarde, deixei o trator na oficina para reparar a avaria. Ligaram-me ao fim de 10 minutos. Problema resolvido, era só a ficha do sensor que tinha ficado mal ligada na reparação anterior e saiu com a vibração da viagem.
Fiz a sementeira no meio do pó mas cumpri um desejo de infância: conduzir um Massey Fergusson da série 300. Nós tínhamos e ainda temos um MF265 (sem sensores de movimento na tomada de força!!!). Ainda me lembro do cheiro a novo na garagem em dezembro de 1980, na altura era a marca mais vendida em Portugal e ainda me lembro quando foi lançada a nova série 300 e como sonhei que o meu pai comprasse um trator desses ou da série 3000, com cabine e ar condicionado. Quem está de fora não imagina como os miúdos filhos dos “lavradores” gostam da marca de tratores como se fosse o clube de futebol e sonham com um trator novo do último modelo. E os mais velhos também, porque a gente cresce (ou nunca cresce) e os brinquedos (tratores) também…
Metade dessa sementeira cresceu bem, a segunda metade correu mal, não por causa do almoço mas por causa de ter usado um saco de semente que sobrou do ano passado e já tinha menos capacidade de germinação. Noutros anos e com outras variedades correu bem, mas fica para aprender. Adiante. Semanas mais tarde, nesse e nos outros campos mais próximos fiz a “monda química” com herbicida, depois fiz a sacha com adubação, deixei a rega da maior parte desses terrenos por conta de S. Pedro (vantagem de semear cedo) e fiz rega gota a gota numa parcela arenosa que nada produz se não regar. Regularmente fui visitando os campos porque “o olho do dono engorda o boi”.
Tinha previsto fazer a colheita no final de setembro, como habitual, mas, com o milho silagem já guardado, fui ver os campos com mais atenção e apercebi-me que as espigas de milho grão no campo da “Bouça Aberta” já estavam dobradas para baixo. Colhi algumas espigas e liguei aos técnicos da União de Cooperativas. Estava com 18% de humidade. Noutras parcelas, 23%. Para conservar ou ser usado nas rações o milho deve estar a 14% de humidade, mas a colheita deve ser feita à volta dos 20%, para melhor rendimento da máquina sem desperdício de milho. Falei com os responsáveis do secador e agendei com o prestador de serviços a colheita para esta quinta-feira que passou, prevendo fazer o transporte com 2 tratores e reboques. No dia anterior fico a saber que a máquina tinha uma avaria impossível de reparar a tempo. Tínhamos dois dias de bom tempo pela frente antes da chuva prevista para sábado e do temporal deste domingo. Teimei. Foi quando publiquei um desenho sobre “Nunca se render”. Procurei uma segunda alternativa, não estava disponível. Procurei uma terceira opção, pessoa impecável e disponível que consegue atender o telefone numa debulhadora sem cabine mas o trabalho e as avarias não correram como o desejado. Falo com outra pessoa, tem a máquina avariada mas indica-me outro que poderá ter uma vaga. Não atendeu mas devolveu a chamada mais tarde. Bato a outra porta. Indicam-me outra pessoa. Não, afinal vendeu a máquina. Mas há outra possibilidade. Quinta-feira já estava perdida mas para sexta-feira consegui então duas máquinas que vinham fazer serviços próximos no início da manhã e podiam fazer-me o “jeito” a seguir. Que lhes ligasse às 10h, disseram-me. Preparei-me para ter duas máquinas a colher em simultâneo. Procurei transportadores com trator e reboque. Como seria de prever, estavam todos ocupados com silagens já marcadas. Pedi reboques emprestados aos amigos que não estavam a ensilar. O plano era colher de manhã e levar de tarde ao secador os reboques que ficassem cheios no outro campo. As máquinas atrasaram-se, como é normal nestas alturas. Enquanto esperava, fui tirando fotografias e incendiando as redes sociais com discussões sobre os reboques mais bonitos. Até parecia que os tinha comprado ou que estava a experimentar. Não, foram emprestados por amigos a quem fico eternamente grato.
A primeira máquina chegou finalmente por volta das 15h00. Às 15h10 avariou. Coisa simples, partiu o elo de ligação de uma corrente. Fomos à procura desse peça simples e barata (10 euros!) mas essencial. Na primeira oficina tinham quase igual, mas não servia. Encontrámos na segunda oficina (felizmente há aqui perto um lugar onde se vendem e reparam tratores e máquinas como se vende leitão na Bairrada, porta sim, porta sim). Voltámos ao trabalho. A segunda máquina chegou às 17h00 e começou a colher noutro campo. Levei o primeiro reboque ao secador ao fim da tarde. Uma máquina trabalhou até às 20h00 e ainda foi para outro lado continuar, a outra máquina andou até às 21h30. Não é fácil colher milho grão de noite com o orvalho.
Era meia-noite quando eu e o Hugo saímos da “Bouça Aberta” com os últimos reboques. Chegámos ao secador à uma da manhã, após uma viagem com o máximo cuidado nas rotunda e descidas e a velocidade possível nas subidas. Saímos meia hora depois com os reboques vazios, outro colega ainda na fila atrás de nós para descarregar e noticias de outra máquina ainda a colher no campo (ou a terminar uma reparação de avaria na oficina). Fizemos a viagem de regresso (40 minutos com o reboque vazio) debaixo da chuva que começou a cair, mais suave do que o previsto mas talvez suficiente para forçar os meus colegas a parar e descansar. O pessoal do secador trabalhou de “direta” até às 8h00.
Falta-me colher o campo que semeei mais tarde, mas consegui colher o milho que podia cair com o vento por estar demasiado maduro e outro que estava num campo ao pé do rio e a que só tinha acesso passando por outros campos que também são “lameiros” onde não podemos passar depois de chover muito.
Parece-vos extraordinário o que vos contei? São as peripécias normais da colheita do milho. É a vida normal de qualquer agricultor da minha dimensão e da minha região. Eu sou apenas um agricultor normal de tamanho médio, que procura seguir os melhores. Só me distingo por tirar umas fotos, fazer uns vídeos e gostar de escrever umas coisas, para que saibam como fazemos chegar a comida do prado ao prato e como dependemos do trabalho e boa vontade dos colegas, dos prestadores de serviços, dos mecânicos e de toda a gente que noite e dia põem o campo a mexer. Estou cansado. Foi uma semana do caraças!
O artigo foi publicado originalmente em Carlos Neves Agricultor.