O director de Investigação e Desenvolvimento da Sogrape conta como a vinha já é vista como “um sistema natural, incorporado num ecossistema”, e fala no promissor estudo da rizosfera e do micélio.
O mote para uma curta entrevista com António Graça, há dias na Quinta do Seixo, eram as alterações climáticas e como elas estão e continuarão a condicionar a vinha. Mas a conversa com o director de Investigação e Desenvolvimento da Sogrape acabou por ser mais abrangente do que isso — ou será o tema que tudo abrange? — e por incluir o que, releva, é hoje “uma via muito promissora” no estudo da vinha: o estudo da rizosfera (a parte do solo junto às raízes de uma planta) e do micélio (a parte vegetativa dos fungos). “É absolutamente interessante. Começamos a ter evidência de que são os fungos que permitem às plantas comunicarem umas com as outras.” Tão interessante que a Sogrape começou a trabalhar com botânicos e micólogos e está a fazer inventários de biodiversidade nas suas quintas.
Quais são as principais preocupações dos produtores de vinho no que diz respeito às alterações climáticas e como estão a preparar o futuro?
O nosso pensamento, e a nossa estratégia [na Sogrape], organiza-se em torno de dois pontos principais. Primeiro: a região do Mediterrâneo é uma das zonas que já está a ser e que vai continuar a ser mais afectada pelas alterações climáticas. As alterações climáticas não se distribuem de facção homogénea no globo. Há zonas que têm um potencial de maior impacto do que outras, e a bacia do Mediterrâneo é uma dessas zonas. Ainda que possamos dizer que Portugal não é só propriamente estritamente um país do Mediterrâneo, nem é banhado pelo Mediterrâneo, do ponto de vista climático somos. Temos uma área significativa do nosso território que tem clima mediterrânico. E somos afectados ao mesmo tempo pelo que acontece no Atlântico e na bacia do Mediterrâneo. Segunda constatação, e isto vem do último relatório do IPCC [Intergovernmental Panel on Climate Change], que foi publicado este ano: há alterações ao sistema climático que com uma elevada probabilidade são irreversíveis no prazo de séculos a milénios. Nós vamos viver, por várias gerações depois das nossas, numa situação climática que não tem nada que ver com o nosso passado.
E isso…
Isto leva a ter um tipo de reflexão e mesmo de planeamento estratégico que necessita de considerar isto. Porque, até há pouco tempo, a nossa principal informação sobre o que ia ser o clima no futuro era o passado, eram as normais climatológicas, que eram a média dos últimos 30 anos. Ora, se há coisa que temos a certeza neste momento é que aquilo que aconteceu no passado não vai ser o que vai acontecer no futuro. Temos de ter outras formas de prever o que vai acontecer no futuro. É aí que entram os modelos climáticos, as projecções, as previsões. E temos aí situações muito diferentes conforme estamos a projectar os próximos 12 meses, os próximos 10 anos ou os próximos 30 a 100 anos.
Porquê?
A capacidade científica de modelizar o funcionamento do clima nestes prazos é muito diferente se estamos a considerar os próximos 12 meses ou se estamos a considerar os próximos 100 anos. Se estamos a considerar os próximos 12 meses, vamos estar a fazer uma utilização mista de modelos que partem da situação actual e projectam o funcionamento da atmosfera nos próximos meses. Se estamos a fazer projecções para os próximos 100 anos, vamos ver como vai ser a constituição da atmosfera aqui a 100 anos e qual será a concentração dos gases com efeito de estufa – carbono, metano, óxido nitroso – e vamos modelizar como seria a atmosfera com essa concentração. Não partimos de uma situação climática hoje e fazemos a sua evolução para o futuro, partimos de um modelo de uma atmosfera diferente daquela que existe hoje e modelizamos como poderia funcionar essa atmosfera.
E na vinha o que é que se antecipa que possa acontecer?
Eu já lá chego. Fiz este preambulo pelo seguinte: isto significa que temos predictibilidades diferentes para diferentes prazos. Temos de olhar para qualquer previsão sempre com uma incerteza associada. Essa incerteza é muito diferente se estamos a projectar os próximos 12 meses ou os próximos 100 anos. E, paradoxalmente, há maior predictibilidade em prazos de 30 a 100 anos do que em prazos de 10 a 30 anos, é neste que há menos capacidade científica de prever o que vai acontecer. E é aí que começam os impactos para a vinha. Se vou plantar uma vinha hoje, considerando que eu espero que a minha vinha tenha uma vida útil de 50, 60 anos, importa-me saber o que vai acontecer nesse período todo, até porque é nos primeiros 30 anos que provavelmente vou ter o breakeven do investimento que fiz.
O que é que é possível saber com alguma certeza?
Em primeiro lugar, vai haver maior variabilidade no funcionamento do clima. Isto nós já estamos a ver. Anos muito diferentes de um ano para o outro: um ano muito fresco, um ano muito quente, um ano muito húmido, um ano muito seco. Todos os últimos sete anos foram extremos de alguma maneira: 2022 foi extremamente seco e extremamente quente; 2021 foi extremamente húmido e extremamente fresco, aliás, parecia um ano da década de 1980, já não se via há 25 anos um ano assim; em 2019 tivemos um ano extremamente húmido e com temperaturas extremamente elevadas; em 2018 tivemos um ano com uma temperatura muito fria no Inverno e muito quente no Verão; 2017 foi um ano extremamente seco mas não tão quente como 2022; e 2016 foi um ano extremamente húmido, tivemos problemas de míldio por todo o lado. Vai piorar daqui para a frente.
Já alguém se referiu a isso como clima ioiô.
Basicamente. Porque, ao termos mais gases com efeito de estufa na atmosfera, estamos a aumentar a temperatura e a energia cinética da atmosfera: os ventos são mais rápidos, o fenómeno de evaporação, condensação, precipitação acontece com maior quantidade de água e também com maior rapidez. Tudo isto junto cria um funcionamento ainda mais caótico da atmosfera. Ele já de si é caótico mas com mais energia no sistema mais caótico se torna. Podemos esperar maior variabilidade, maior frequência e intensidade de eventos extremos. Podemos começar a ver, como já estamos a começar a ver, eventos que não se conheciam nas nossas latitudes, como tornados, por exemplo. Sobretudo pela nossa latitude, mas também pela forma como o país está posicionado na faixa costeira da península [ibérica], virado para Oeste, à partida não é fácil acontecerem aqui tornados, como acontecem na parte continental dos EUA ou na Ásia Central, mas já estamos a começar a vê-los.
E como é que isso impacta a vinha?
A vinha é uma planta extremamente resiliente pela sua própria genética, mas condiciona – e é por isso que ela é resiliente – muito o seu funcionamento ao ambiente, portanto, adapta-se com muita rapidez. Por exemplo, nas vinhas que nós temos irrigadas – só temos 30 por cento de vinhas irrigadas, 70 por cento das nossas vinhas continuam a ser cultivadas apenas com água da chuva –, paradoxalmente, estamos a gastar mais água nos anos mais húmidos do que nos anos mais secos. Sobretudo se o ano é completamente seco do início ao fim, como 2022 e 2017, no período da Primavera, a videira não vai crescer tanto, deitar tantas folhas.
A videira protege-se…
Exactamente. Quando chega o Verão, altura de grande pressão atmosférica para retirada de água do solo através da sala, ela não tem tantas folhas por onde transpirar e a quantidade que é necessária para manter a videira num funcionamento regular é muito menor do que num ano em que ela tenha crescido muito, toda aquela folha está a transpirar e no Verão é preciso-lhe dar-lhe banho. Mas isto é contra intuitivo e nós temos de pensar nisto na projecção para o futuro. Se nós começarmos a ter anos mais secos desde o início à partida não vamos ter tanta necessidade de água como teríamos se o ano fosse relativamente temperado até ao Verão e depois fosse quente e extremo no Verão. Importa perceber como é que os padrões atmosféricos vão funcionar ao longo do ano, não é apenas o global do ano que interessa. É em cada momento o que vai acontecer. Esse é um ponto.
O outro são as […]