Falta água, há novas explorações agrícolas debaixo de plástico. Chegam quase até às arribas, em plena zona protegida. A fauna e a flora ressentem-se. Como vai Odemira proteger a sua costa selvagem
A praia ainda está quase deserta. É um dia do início de Maio a fazer lembrar um de Verão. Um ou outro visitante passa, espreita o mar relativamente calmo a bater nas falésias que dão forma à paisagem da praia da Zambujeira do Mar. Quem não conhece a zona — ou então se fique apenas pelas praias daquela zona nas férias de Verão — talvez não imagine as gigantes manchas de plástico que se estendem nas nossas costas, a dois passos daquele areal sereno e dourado.
Como havia de dizer-nos Sara Serrão, uma “microempresária” que se encantou pela terra, “a paisagem continua aqui”. “Isto continua a ser lindo. Mas há aqui uma tensão social.” De há uns anos para cá, hectares de explorações agrícolas tomaram conta de terrenos que estão a 50, 100 metros do mar.
Cultiva-se debaixo do plástico, em estufas, estufins, túneis. Da estrada, mal se vêem. Estão ladeados por altas sebes. À saída da vila, entrando por uns estradões de terra, lá estão aquelas estruturas de metal e plástico com plantas de pequeno fruto – como lhe chamam – debaixo delas. Ouvem-se os trabalhadores ao longe, a conversar numa língua estrangeira.
Sempre que passa pela região, Sara Serrão, que vive hoje uns quilómetros mais a norte, surpreende-se. “Eu morei aqui oito anos. No caminho para cá vi um pomar de laranjeiras de 100 hectares que foi todo arrancado sabe-se lá para fazer o quê. Vi um terreno, em pleno parque natural, todo terraplenado. Esta zona aqui que está com estufas; há um ano, não estava…”
Tudo isto acontece dentro do Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina, assim constituído em 1995 e que se estende ao longo de 110 quilómetros de faixa costeira entre S. Torpes (Sines) e Burgau (Vila do Bispo), ocupando uma área de 131.000 hectares. É também sítio da Rede Natura 2000, uma rede ecológica de âmbito europeu, que visa assegurar a biodiversidade, através da conservação ou do restabelecimento dos habitats naturais e da flora e da fauna selvagens.
É um exemplo quase único na Europa, aproveitado, nos últimos anos, por empresas, nacionais e multinacionais, que ali encontraram condições excepcionais para o cultivo de pequenos frutos. Onde antes se semeava milho, onde cresciam prados e se produziam silagens, instalaram-se estufas, túneis — até contentores — em terrenos de parque natural.
Vistas do céu, são manchas e manchas de plástico em terrenos mesmo junto à costa. Algumas explorações chegam a ser dentro da “faixa de protecção” de 500 metros a contar da linha de costa, definida no Plano de Ordenamento da Orla Costeira (POOC) Espichel-Odeceixe, muito perto das arribas. E que estarão, por isso, em incumprimento.
A situação chegou a um ponto tal, que se transformou “numa ameaça aos valores naturais da região: destroem biodiversidade, aceleram o processo de desertificação numa região afectada por seca extrema e por muito pouca pluviosidade, fitofármacos por vezes abandonados junto a locais de recolha de lixo doméstico, mão-de-obra imigrante que vive em condições extremamente precárias”, enumera a geóloga Fátima Teixeira, membro do movimento de cidadãos Juntos pelo Sudoeste, que decidiu mobilizar-se no final de 2019 para tentar altear este cenário.
De acordo com o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), entre os 12 mil hectares de Perímetro de Rega do Mira (PMR), “cerca de 13%” (1560 hectares) têm “culturas forçadas (estufas, estufins, abrigos)”. A Câmara de Odemira, o maior concelho do país e o mais afectado por este tipo de agricultura, fala em 4000 hectares entre produção coberta por estufas e túneis de plástico, e descoberta, na mesma área.
Uma “indústria extractiva”
Quando se mudou para a região, há 14 anos, Sara Serrão quis investir num “pequeno projecto de turismo sustentável”. “Vim investir à minha ‘micromedida’, exactamente por se tratar de um parque natural, de uma área protegida.”
Desde então, viu a região mudar drasticamente. “Este modelo de desenvolvimento foi imposto a toda a região sem respeitar limites sociais, habitacionais, dos recursos ambientais. E até de uma grande violação da paisagem, que também faz parte da identidade de um território.”
Da praia não se tem, por vezes, noção dos grandes aglomerados de plástico que se estendem nas nossas costas. Mas subindo até a um posto de observação de fogos entre as localidades de São Teotónio e do Brejão, com a povoação da Azenha do Mar ao fundo, vemos o planalto a descoberto e as manchas de plástico diante dos nossos olhos. “Este é um dos hotspots da agricultura intensiva no Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina”, identifica a empresária, que também integra o movimento Juntos pelo Sudoeste.
Nem sempre foi assim. Durante muitas décadas, a agricultura — principal actividade ali na região — conviveu “de forma pacífica com a conservação da natureza”. Não que não existissem “infracções e coisas graves a ocorrer, mas eram coisas pontuais”, já que a agricultura era ainda muito extensiva, enquadra a bióloga Paula Canha, que tem feito investigação na região. “Havia um certo equilíbrio entre aquilo que eram as práticas agrícolas e as espécies que lá se desenvolviam, seja da fauna, seja da flora.”
Em poucos quilómetros de litoral, há ali uma “imensidão” de habitats: desde os costeiros e as falésias, os sapais e os prados salgados, junto ao mar. Terra adentro, as dunas, os habitats de águas paradas e correntes, as charnecas húmidas e secas, os medronhais, os montados, as pradarias húmidas. “É uma zona que tem um microclima muito especial, aliás, serviu como refúgio climático durante as últimas glaciações e há todo um conjunto de situações que levaram a que aqui aparecessem espécies endémicas que só existem aqui e em mais nenhum sítio do mundo”, enquadra a bióloga.