A semana ficou inevitavelmente marcada pelo rescaldo das manifestações de agricultores, em Portugal e um pouco por toda a Europa, algumas das quais ainda continuam, em Espanha e no nosso país. Fruto desta tomada de posição, reconhece-se já como positivo algum recuo da Comissão Europeia em alguns dossiês legislativos de enorme relevância para o futuro do setor: sem dúvida, o mais emblemático foi a utilização sustentável de pesticidas, cujos impactos, a avaliar pelos estudos conhecidos e desde logo o da Associação Nacional da Indústria para a Proteção das Plantas (ANIPLA), eram muito negativos. No entanto, o tal rolo compressor ambientalista, de que temos falado aqui nas últimas semanas, não permitia olhar para as consequências das medidas políticas e, ao que sabemos ainda não permite. Não temos conhecimento de que as metas da Estratégia “Do Prado ao Prato” estejam a ser revistas. A proposta legislativa sobre a utilização sustentável dos pesticidas foi retirada porque ainda estava “nas mãos” da Comissão. Vai ser bem mais difícil (impossível?) reverter as que já passaram pela codecisão com o Parlamento Europeu, e estão hoje vertidas em Regulamentos.
Apesar de a Agricultura ter estado no centro da agenda mediática por estes dias, não tenhamos ilusões: mais do que concordar com os protestos dos agricultores, a União Europeia (porque não foi apenas a Presidente da Comissão a falar aos agricultores) procurou conter os movimentos extremistas e as radicalizações, qual cerca sanitária, a poucos meses das eleições para o Parlamento Europeu, e num segundo semestre de presidência húngara, que se configura bastante difícil. Basta relembrarmos as posições da Hungria, por exemplo na biotecnologia e nas novas técnicas genómicas, ou, bem mais complexo, no apoio da União ao conflito na Ucrânia e as atitudes dos seus agricultores, e de outros seus vizinhos, perante os produtos agrícolas provenientes daquele país.
Aliás, foi bem visível em Bruxelas a enorme solidariedade prestada por Viktor Orbán aos agricultores europeus, movimentando-se (e fotografando-se) entre os manifestantes.
Entretanto, como se esperava, o Parlamento Europeu aprovou, com alterações, como sempre acontece, a proposta da Comissão sobre as Novas Técnicas Genómicas, com 307 votos a favor, 263 contra e 41 abstenções, pese embora toda a pressão dos movimentos contra a biotecnologia nos últimos dias. O dossiê segue agora para o trílogo e a urgência é que seja ainda aprovada na presidência da Bélgica. Não vai ser fácil, a adivinhar pelas notícias que vamos tendo do Comité de Representantes Permanentes dos Governos dos Estados-membros da União Europeia (COREPER), que continuam divididos sobre este tema. Para já, com o apoio da Comissão e de um número relevante de Estados-membros, entre os quais Portugal, fica a certeza de que se trata de uma ferramenta indispensável para o desenvolvimento sustentável da agricultura europeia e para evitar disrupções na importação de matérias-primas essenciais para a cadeia alimentar, desde logo para a Indústria da alimentação animal. Apesar das boas notícias, convém sermos cautelosos.
De facto, como escrevemos na semana passada, de repente, parece que as angústias e a fúria que estavam reprimidas se soltaram, em todo o lado e ao mesmo tempo. Não deixa de ser relevante perceber que as manifestações não tiveram todas as mesmas causas. Para uns, as críticas aos respetivos governos, a falta de confiança nos governantes e a ausência de apoios prometidos; para outros, regras ambientais que não têm sentido e que urge alterar e, ainda, para os do leste europeu, as importações dos produtos a baixo preço com origem na Ucrânia e que penalizam os agricultores e produtores pecuários. No entanto, o mesmo tronco comum: a desqualificação política do Setor em Bruxelas e na generalidade dos países europeus, a concorrência desleal que decorre da imposição desequilibrada em comparação com países terceiros de regras e normas ambientais, de bem-estar animal e segurança alimentar, às quais se juntam agora as relativas à dimensão social. E os baixos preços dos produtos na produção, que não permitem viabilizar as explorações e acreditar num futuro melhor.
Há quantos anos dizemos que a agricultura não pode servir de moeda de troca nos acordos de comércio livre? E, uma vez mais, preparava-se para o ser no quadro do Mercosul. Vai ser possível reverter esta situação, perante a necessidade de alavancar o comércio noutros setores chave da economia europeia e a manutenção do superavit do agroalimentar europeu? Talvez impor critérios de sustentabilidade ou regras equivalentes, as tais “mirror clauses” que a presidência francesa tanto propagandeou e rapidamente esqueceu.
Tudo isto não é novo, apenas para os mais distraídos.
Agora, ao debater o futuro da agricultura na União Europeia, há que não descurar as razões das manifestações, nesta “trégua” até às eleições europeias. Mas a máquina é pesada, demasiado pesada… e começamos a ver os “opositores” a colocar em causa estas decisões da Comissão, em nome de mais ambiente e do combate às alterações climáticas, do bem-estar animal, da degradação florestal, das emissões, da saúde, humana e animal.
O mindset da Comissão Europeia está lá, nada mudou. É preciso reforçar as organizações que representam os diferentes setores e o Parlamento Europeu, porque se os movimentos inorgânicos não deixam de ser positivos e desafiantes, a existência de estruturas representativas que dialogam com os poderes instituídos são a base da decisão democrática e a forma mais eficaz na defesa dos legítimos interesses.
A rua não pode, nem deve, ser a normalidade.
Numa altura em que a PAC pós-2027 já começa a ser discutida, também é importante ter a noção de que a Política Agrícola Comum não é mais agrária, mas sim agroalimentar, território, ambiente e mundo rural.
Não são só os agricultores os únicos a ser ouvidos e escrutinados, é toda a sociedade civil, pelo que é importante trabalhar ao nível dos Estados-membros para fazer valer estes interesses nas respetivas opiniões públicas e publicadas. Pelo que temos ouvido nos debates, na CONFAGRI e na CAP, todos estão de acordo em reverter as políticas para o setor. Veremos se vai ser possível – esperemos que sim – e que peso terá um futuro Ministro(a) da Agricultura no elenco governativo, o que vai ser, desde logo, um indício das prioridades políticas do Governo que sair das eleições de 10 de março.
Por tudo isto, e porque a PAC é muito mais que Agricultura e a Comissão Europeia muito mais do que a DG AGRI, o melhor é não desistir de fazer valer os nossos argumentos, mas gerir as expetativas, sem grandes ilusões.
Talvez apenas a ilusão de que merecemos um Ministério da Agricultura e Alimentação, incluindo as florestas, que governe ouvindo os setores que representa, e que sirva os interesses dos agricultores, do agroalimentar e do Mundo Rural.
Em Portugal e no quadro da União Europeia.
Jaime Piçarra
Secretário-Geral da IACA
Fonte: IACA
2024 tem de ser o ano do combate à desinformação – Jaime Piçarra – Notas da semana