Apesar de tudo o que mudou na vida das pessoas desde há um século, a necessidade de utilizar cereais não se alterou em nada nem vai alterar, quer seja na alimentação humana directamente ou na alimentação animal.
Então é uma questão estratégica à qual deve ser dada toda a atenção. Mas não tem sido assim por parte dos sucessivos governos, pelo contrário. Decidiram deixar cair o sector e delegaram nas multinacionais e no agro-negócio português o abastecimento do país, segundo aquela teoria neo-liberal bem conhecida de que é mais barato importar do que produzir. Assim chegámos à trágica dependência em que nos encontramos hoje.
Perdemos a maior parte das nossas sementes “camponesas” e um imenso património de conhecimento. Sim, porque produzir requer uma logística complexa.
Foi fácil destruir o sector com o desmantelamento da saudosa EPAC (Empresa Pública de Abastecimento dos Cereais) pelos governos do pós-adesão à CEE. Os pequenos e médios Agricultores, particularmente,
ficaram sem possibilidade de colocar a sua produção, desistiram de produzir, sucedeu o pousio e o abandono das belíssimas terras.
Em simultâneo, e consequência disso, as terras que produziam cereais passaram a estar ocupadas com eucaliptos. A eucaliptização do País está relacionada com o abandono da produção de cereais. Os responsáveis políticos por tudo isto estão na origem de dois desastres por terem idolatrado a PAC: um a dependência alimentar do País, dois a tragédia dos incêndios. E não adiantam as lágrimas de crocodilo. Prestaram um mau serviço ao País para protegerem os interesses da Oligarquia.
Um mal nunca vem só: a “mundialização”
Os Agricultores sofreram um primeiro embate com a CEE sem preços garantidos, que foram substituídos por subsídios (que não foram para todos) ou as ditas “ajudas”. Passaram a preencher papéis e muitos foram os excluídos pois não tinham “dimensão adequada” nem “viabilidade económica” na lógica da PAC. Depois de uma primeira selecção, ficaram os maiores.
Em 1992 surge a mundialização: a Agricultura integra a Organização Mundial do Comércio (OMC) e os preços dos cereais passam para o nível mundial. Decididos na bolsa de Chicago ou em Wall Street esses preços não reflectem os custos de produção. É o segundo embate. Desta vez, com a mundialização e a liberalização das trocas comerciais, são abolidas as tarifas aduaneiras, a Agricultura utilizada como moeda de troca é o novo paradigma. A corrida ao gigantismo é desenfreada. Ninguém é suficientemente grande para a competição mundial. É no quadro desta luta titânica que a CEE/UE decide o desligamento das ajudas da produção, para acalmar os protestos dos países grandes produtores agrícolas, que diziam que as ajudas europeias à produção distorcem a livre concorrência.
Por todas estas razões sempre dissemos na CNA que a Agricultura como sector específico que é não devia integrar a OMC. As ajudas desligadas da produção foram mais um motivo para o abandono. Todos os que tinham o histórico de produção em 2003 recebem o subsídio sem obrigação de produzir.
O resultado hoje é que quatro multinacionais controlam 90% do comércio mundial de cereais. A sua força provém de uma extraordinária capacidade logística, facilitada pelo livre comércio.
O perigo desta concentração, que não é conhecida pela opinião pública num sector tão estratégico, deve-nos incitar a vigilância, porque o mais provável é a catástrofe.
Da semente ao pão
Há, todavia, alguma coisa a fazer tendo em conta o quadro preocupante atrás descrito. Produzir trigo nas condições actuais para a pequena e média Agricultura é sobretudo um acto de resistência e, ao mesmo tempo, um gesto consciente da necessidade de preservação essencial. Num misto de cultura e espiritualidade. É possível reverter a situação que temos com inteligência e determinação. Para começar devemo-nos reapropriar das nossas sementes, que passaram todos os testes ao longo da história. São elas que vão tirar da mãe terra os nutrientes e minérios que necessitamos para o nosso alimento.
Isto é válido para os trigos e para os milhos destinados à alimentação humana. Esta linguagem estranha pode fazer sorrir os produtivistas e adeptos da intensificação, porque eles ainda não sabem que o seu modelo está esgotado. A cerealicultura de pequena escala terá um caminho próprio. Vai, pela qualidade nutricional, ao encontro daqueles e daquelas que sabem o que não querem e não pelo volume produzido por hectare, tendo em conta a conservação dos solos e de todo o ecossistema. Há uma franja de pessoas que começam a ficar fartas de comer “o pão que o diabo amassou”. É aí que a pequena escala se torna grande.
O desafio será transformar o cereal em farinha e pão sem passar pelas moagens industriais. Local e circuito curto é o segredo. Os próprios consumidores poderão fazer a sua farinha em casa e o respectivo pão utilizando um trigo ancestral, agricultor e consumidor têm nisto interesse recíproco. O País também ganha em Soberania Alimentar. Desfazer os mitos da competitividade e compreender que o nosso pão é política ajuda a perceber tudo o que gira em torno desta importante questão e porque é que o Trigo Barbela foi posto de parte, ele que está adaptado ao tipo de solos que temos que nos permite cobrir todo o território nacional (assim era até 1935).
O que digo não é uma utopia nem uma fantasia, nem tão pouco romantismo, como me respondeu um dia o Comissário Franz Fischler numa reunião em Bruxelas, é já a minha realidade hoje. Vários são já os Agricultores e Agricultoras que estão a viver este reencontro com a nossa história cerealífera em vários pontos do País.
Em jeito de conclusão, relembro Frida Khalo y Calderon que disse um dia “não quero que pensem como eu, mas pensem”.
João Vieira, Guardião de sementes camponesas e Membro da Direcção da CNA
O artigo foi publicado originalmente em CNA.