Vínica, vitícola ou bagaceira, a aguardente dava e dá para tudo: ferida, inchaço, mal de dentes ou mal de amores, a valer na falta de coragem ou na urgência de afogar remorsos e saudades, para fazer licores, para postura macho na conversa de engate, para o papel vegetal do paio de chocolate, para as rosquilhas, para acompanhar figos secos e nozes no mata-bicho ao amanhecer de dias gélidos, para o cheirinho no café, para o clic de inspiração ao teclar. Para modelar propriedades do vinho e o conservar.
Esta última qualidade, que é utilizada em muitos sítios do mundo em muitos vinhos célebres, e noutros, mais raros, de perfil único, de determinadas casas, é à que se recorre, há séculos, para o Vinho do Porto. Historicamente, a aguardente para a aguardentação tem sido destilada dentro e fora da Região Demarcada do Douro, obtida de vinhos e de produtos vitícolas de dentro e fora da RDD. A gestão política das aguardentes, logo desde a criação da Companhia, há quase três séculos, ocupou uma boa parte das mentes incumbidas de a assegurar nas quantidades, qualidade e preços adequados para o processo da aguardentação. Oficialmente, provinha “das três províncias do Norte” (Douro, Trás-os-Montes e Minho, com esta última a prevalecer) onde a Companhia, aliás, tinha destilarias próprias, e as quintas do Douro produziam também a sua quota-parte, se tivessem instalados ou alugassem os equipamentos próprios para tal, sob a supervisão dos provadores e inspectores oficiais. E também vinha do estrangeiro, por falta dela cá dentro, independentemente das causas desta falta, importações essas que nem sempre correram bem. A contribuição das aguardentes do Centro e do Sul do País para o negócio do Douro veio a ser importantíssima na regulação com que todo o mercado funcionou durante uma boa parte do século XX, tendo havido um brevíssimo período, de 1954 a 1966, em que a Casa do Douro apenas terá utilizado aguardente do Douro no rateio para o benefício dos mostos, quase toda destilada nos seus centros de destilação. Nesta dúzia de anos (cuja estatística terá de ser revisitada por quem os queira compreender) estará enraizado o argumento de que o Douro se deveria bastar a si próprio, em exclusividade, para destilar toda a aguardente necessária para o benefício, a partir das suas próprias uvas e vinhos.
As circunstâncias de mercado em que o mundo económico livre actualmente se movimenta, o custo das uvas duma vindima no Douro (vindima mais difícil e mais cara que noutras regiões), e o facto de que, para fazer um litro de aguardente, são necessários sete litros de vinho, ou mais, em média, tudo isso e uma série de argumentos que aqui não cabem, fazem com que uma hipótese academicamente possível e sedutora (a de que o Douro se baste a si próprio em aguardente para o Vinho do Porto) não passe de ser uma hipótese. Se bem que, no Douro, hoje, a destilação de aguardente vínica e vitícola de base 77% ultrapasse já os 2 500 000 litros e seja exequível aumentar este número para muitíssimo mais, anualmente.
Não são precisas mais normas nem legislação, para além das que constam no site do IVDP, para que no Douro possa haver os Vinhos do Porto aguardentados exclusivamente com aguardente do Douro, destilada a partir de vinhos ou sub-produtos do Douro. Vinhos que serão duma categoria superior, pelo custo de produção e pelo valor, se quisermos ser justos, das uvas, na RDD: a partir destas uvas se fazem os mostos, os vinhos e a aguardente, vínica e/ou vitícola, para todo o processo. Se um tal vinho tem ou terá vantagens comparativas com os seus congéneres, é algo para que não há suficientes dados publicados.
Será absoluto o argumento de que uma aguardente, por ser neutra por definição e exigência normativa, não possa ter um carácter que exprima a genética, o terroir e o climat das uvas do vinho de que foi obtida? O afinar científico das análises, que têm vindo a evoluir sobretudo nos últimos anos, permite provar que uma aguardente vínica ou vitícola “neutra” a 77%, destilada na Califórnia ou em França, ou destilada cá, com vinhos doutras regiões, poderá ser, e sê-lo-á seguramente, diferente duma mesmíssima aguardente a 77% destilada de vinhos do Douro. Claro que um humilde provador como eu não as distinguiria assim sem mais, mas um enólogo, cuja perícia vise obter um determinado vinho a partir dum determinado mosto, pode e deve querer uma determinada aguardente com ácidos orgânicos e aldeídos isto ou aquilo, analiticamente falando, para combinar com um mosto analiticamente quejando. Daí que a possibilidade de querer abafar-se um mosto ou fazer-se uma calibragem com uma determinada aguardente e não outra, seja legítima, desde que conforme ao estipulado no caderno de especificações desta DO, tal como a liberdade dos produtores de VP poderem abastecer-se pelo seu caracter e não apenas pelo seu preço ou pela sua origem. Quer com aguardentes autóctones quer alóctones, têm sido feitos belíssimos Vinhos do Porto e as suas extraordinárias qualidades e valor estão hoje, mais do que nunca, em máximos!
O Douro tem tudo para se poder impor no mercado das melhores aguardentes do mundo. No segredo de muitas adegas e em cubas e pipas esquecidas (bem, de algumas, pelo menos…) estão guardados hectolitros cuja amostra, vertida num cálice que se possa afagar na mão, cheirar, surpreender-nos com a luz-âmbar que irradia, provar, na língua e com a boca, uma essência que nos transporta quase ao céu, é um privilégio e momento de encantamento arrebatador que nos faz querer mantê-lo interminável e relegar para o oblívio quaisquer outras bebidas espirituosas. Para os que sempre beberam dos melhores whiskies, cognacs, armagnacs, brandies, macieiras e soberanos, de tudo do melhor, compreendem o encanto e prodígio duma destas aguardentes secretas do Douro. E não são só a emoção ou o patriotismo a falarem: é tudo o mais que está ali, e em grande nível. Tenho a certeza de que será com um cálice duma destas aguardentes do Douro que, à entrada no Céu, seremos recebidos, sobretudo aqueles a quem nos for mais difícil esse caminho até lá!
Maria II, de espírito muito juvenil e maduro, digna de muito mais crédito do que qualquer dos Chefes de Estado que temos tido no século XX, deve ter cheirado destes espíritos voláteis do Douro num banquete oficial ou numa confidência da Corte, porque assinou uma legislação, específica para tais aguardentes do Douro, em 1852, que, num país estrangeiro, seria usada até ao infinito para a promover (à aguardente, já que a Rainha não precisa). Connosco, portugueses, quase silêncio. De lembrar que essa Rainha, grande Rainha, também subscreveu a fundação da Faculdade de Belas Artes de Lisboa e do Banco de Portugal. Todos os três (contamos aqui com as aguardentes do Douro) existem hoje ainda, quais suprassumos do nosso país, resistindo à nossa voracidade iconoclástica de instituições e nomenclaturas.
Vivemos num mundo livre com regulamentos que têm de ser aceites em espírito interprofissional. Para que todos possam ganhar dinheiro com a produção e o comércio das uvas, dos vinhos e das aguardentes mais excepcionais de Portugal. Do Douro e do Porto. Dizer mais, será supérfluo. Querer mais, será inovador e legítimo. Sempre.
Manuel Cardoso
Consultor e escritor
Artigo publicado originalmente em Eggas.