Climatólogo português e investigadora da World Weather Attribution falam sobre o estudo da relação entre as alterações climáticas e os eventos extremos. A onda de calor de 2003 foi o ponto de partida.
Quando ouvimos falar em ondas de calor, facilmente as associamos às alterações climáticas. Mas o estudo desta relação — que, alertam os cientistas, não é totalmente causal — é relativamente recente e começou há cerca de 20 anos, com uma das ondas de calor mais intensas na Europa, que afectou fortemente Portugal continental, entre 29 de Julho e 14 de Agosto de 2003.
“Na altura, percebemos que essa onda de calor [de 2003] era muito diferente das outras anteriores”, começa por explicar ao PÚBLICO o climatólogo Ricardo Trigo, professor da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. Além de “prolongada no tempo”, esta onda de calor “teve uma magnitude impressionante”, afectando uma grande área da Europa ocidental, com “impactos na mortalidade na região”. Foi então que os cientistas começaram uma “procura incessante” de uma explicação para este fenómeno.
Sarah Kew, investigadora do Instituto Real de Meteorologia dos Países Baixos e membro da World Weather Attribution (WWA), recorda que os primeiros artigos influentes sobre a relação entre as ondas de calor as alterações climáticas “foram publicados por volta de 2003”. “Depois, tornou-se claro que era possível fazer estudos de atribuição [trabalhos que procuram encontrar provas de uma ligação entre dois fenómenos] nesse domínio.”
A investigadora destaca que, na altura, os fenómenos analisados ocorriam em regiões mais vastas. Ao longo das últimas duas décadas, “o sinal das alterações climáticas tornou-se mais forte e as técnicas desenvolveram-se, o que permitiu passar a estudar escalas de tempo e regiões mais pequenas”.
Ricardo Trigo acrescenta que vários grupos começaram a utilizar “metodologias bastante complexas” para estudar esta relação, nomeadamente “grupos com muitos recursos na Suíça, na Alemanha, na Inglaterra e em Paris. Em 2010, registou-se outra “superonda de calor na Rússia, mais intensa”, e os cientistas ficaram ainda mais intrigados com o assunto. “O meu grupo da Faculdade de Ciências publicou um artigo na revista Science pondo em perspectiva as ondas de calor de 2003 e 2010 nas centenas de anos anteriores para os quais temos dados. Percebemos que estavam completamente a fugir ao esquema não só das últimas décadas, mas também das últimas centenas de anos”, nota o climatólogo, acrescentando que “o problema é que, nos últimos 12 anos, têm sido umas atrás das outras”.
Como se calcula isto?
Mas como é que os cientistas calculam isto? Observação e modelos climáticos. Ricardo Trigo alerta para que “não se consegue dizer taxativamente que um determinado evento foi causado pelas alterações climáticas antropogénicas”, ou seja, causadas pela actividade humana.
O que os cientistas fazem é utilizar “modelos que tentam reproduzir o clima ao longo de 30, 40 ou 50 anos”, fazendo simulações tendo em consideração os “gases com efeito de estufa tal como eles foram sendo enviados para a atmosfera” e outras simulações “sem considerar os gases com efeito de estufa antropogénicos e mantendo o nível de há cerca de 60 anos”. “Quando se compara a probabilidade de ondas de calor muito intensas [entre as duas simulações], a diferença já no tempo actual é brutal”, afirma o climatólogo.
A investigadora da WWA destaca, por sua vez, que a equipa da qual faz parte “analisa o domínio espacial e temporal” de determinado evento e tenta “seleccionar um parâmetro que se relacione sobretudo com os impactos” nas pessoas. Com o calor, diz Sarah Kew, “é bastante simples ver que existe, de facto, uma relação” com as alterações climáticas — embora, saliente […]