Quem primeiro me chamou “agricultor sindicalista”, em tom carinhoso, foi o atual Cardeal-Patriarca D. Manuel Clemente, quando era Bispo do Porto, numa reunião com a Equipa Diocesana da ACR, porque me tinha visto na televisão, dias antes, a intervir numa manifestação por causa do preço do leite. Curiosamente, anos depois, quando me candidatei a presidente da cooperativa, ser “sindicalista” já foi usado contra mim em campanha. Não foi só por causa disso que perdi as eleições, mas entre dirigentes cooperativos e associativos há desconfianças que dificultam a comunicação e aceitação entre pares.
Quando pensamos em agricultores, regra geral, pensamos em empresários agrícolas, trabalhadores por conta própria ou sócios de empresas agrícolas que trabalham com ajuda da família ou assalariados. Outras vezes a agricultura é uma segunda atividade, realizada ao fim de semana ou ocupando o tempo de quem já está reformado.
Quando pensamos em sindicato, temos em mente uma associação de trabalhadores por conta de outrem numa determinada empresa ou profissão. Por exemplo, sindicato de mineiros, de professores ou enfermeiros. Em Portugal existem, pelo menos, dois sindicatos para trabalhadores agrícolas, o Sintab e o Setaab.
Portanto, um “sindicato de empresários” é coisa que não parece fazer sentido, mas, curiosamente, na origem das atuais associações agrícolas, cooperativas e caixas de crédito agrícola estiveram “sindicatos agrícolas” inspirados no associativismo agrícola francês e alemão que surgiram em Portugal em finais do século 19 e existiram até o Estado Novo criar as “casas do povo” e os “grémios da lavoura”, mais tarde extintos e integrados nas atuais cooperativas agrícolas.
Os agricultores são sempre pequenos empresários face à dimensão dos parceiros de mercado. Mesmo quando são proprietários de herdades com milhares de hectares são pequenos empresários face a grandes empresas de transformação ou distribuição. Faz sentido que se organizem em cooperativas e associações e que se manifestem quando sentem dificuldades no mercado.
Às cooperativas corresponde uma função sócio- económica (comprar e vender os fatores de produção e os produtos agrícolas) e às associações uma representação socioprofissional, mas muitas vezes estas organizações e as confederações que as congregam têm fronteiras ténues e interesses concorrentes que levam a divisões ou rivalidades.
Quando me instalei como jovem agricultor havia uma grande contestação dos jovens ao funcionamento das cooperativas agrícolas, contestação que tomou forma através da apresentação de listas candidatas às cooperativas. Em várias ocasiões, aqueles que perderam as eleições organizaram-se em novas associações e às vezes novas cooperativas. Haver alternativas é bom, mas nem sempre é fácil construir do zero uma nova organização. Na Bíblia o pequeno David derrotou Golias, mas na vida real é mais provável ocorrer o oposto. É bom haver liberdade para mudar, mas é pena os agricultores saírem das “casas comuns” que foram construídas com o seu trabalho e os lucros da venda do que produziram. Também é negativo que essas organizações mais antigas percam pessoas com capacidade de intervenção e inovação, pois precisam de “massa crítica”, gente capaz de gerir e intervir.
Consciente desses aspetos negativos, quando me envolvi no associativismo agrícola tentei fazer diferente. Juntei nas mesmas listas jovens “críticos” com jovens integrados no movimento cooperativo. Organizei reuniões e colóquios de jovens agricultores nas instalações das cooperativas. Evitei mais “cisões” (já somos tão poucos!) mas organizar consensos não foi consensual e causou desconfiança de ambos os lados.
Citando Afonso de Albuquerque, senti-me várias vezes “mal com o rei por causa dos homens e mal com os homens por causa do rei”. Para os que estavam no poder cooperativo fui o “sindicalista” que tirava o protagonismo e era uma ameaça ao poder; para os que queriam ouvir críticas violentas ao poder, fui moderado demais. Não acreditando que uma pessoa pode ser moderada por opção, há quem tenha preferido acreditar numa longa lista de “tachos”, “pagamentos” e “gabinetes” que a imaginação de uns foi inventando e a má-língua de outros foi espalhando. Ossos do ofício.
O setor cooperativo leiteiro, aquele que conheço melhor, teve mérito na forma como garantiu e organizou a recolha, o pagamento regular da produção de leite e a transformação em produtos de qualidade com segurança alimentar. Tem também os defeitos que todas as organizações ganham com o passar do tempo e com a permanência das mesmas pessoas no poder ao longo de muitos anos. Precisa de ser renovado, modernizado e profissionalizar a gestão. Os dirigentes devem ser justamente compensados pelo tempo que gastam. Nem de menos nem de mais. Precisa de ter uma estrutura mais leve, agora que somos poucos agricultores.
Contudo, não se governa uma casa de fora. Não se pode organizar uma manifestação à porta de uma cooperativa de cada vez que se quer mudar alguma coisa. Não digo que nunca se possa fazer, mas em princípio as coisas devem resolver-se em assembleia geral anual ou eleitoral. Para poder mudar, é preciso conquistar o poder. Não é errado ter ambição. Errado é mentir e tentar subir puxando os outros para baixo. Alguém tem que liderar um país, uma câmara, freguesia ou cooperativa. Para chegar ao poder há dois caminhos opostos, mas ambos legítimos: apoiar quem está no poder ou fazer oposição.
O caminho que escolhi, uma espécie de terceira via, de tentar fazer pontes, de pensar livremente mas falar com cuidado, deixa-me de consciência tranquila mas também consciente que este é o caminho mais longo e difícil para chegar a algum poder. Não faz mal, nem só no poder somos úteis, também são precisas vozes proféticas a pregar no deserto. Desde que não acabe como S. João Baptista (O padroeiro da minha terra, Vila do conde), com a cabeça numa bandeja, está tudo bem… (escrito para o “mundo rural” de janeiro / fevereiro 2022)
O artigo foi publicado originalmente em Carlos Neves Agricultor.