Tendo em conta a grave seca que tem fustigado o nosso País ao longo de 2022, acrescentando mais problemas aos que já decorrem da guerra, temos sido chamados a intervir publicamente sobre o tema e as consequências que daí decorrem para a alimentação animal, neste contexto bem difícil em que vivemos.
Desde logo, o impacto para a alimentação dos animais, que sem pastagens ou com disponibilidades mais reduzidas, têm de recorrer a rações, com acréscimos de custos e perda de rentabilidade. Temos ainda o problema da água, em que muitas explorações não têm já reservas disponíveis e são cada vez mais os municípios a recorrer aos bombeiros e a camiões-cisterna para o abeberamento dos seus efetivos.
Fomos até acusados de criar algum alarmismo quando referimos o que tem sido óbvio e os media nos mostram diariamente: muitos produtores pecuários estão a vender animais, a reduzir efetivos para manter as explorações minimamente viáveis, na esperança de sobreviver e que, sem apoios robustos, à altura das dificuldades que atravessamos, muitos deles (sim, serão infelizmente muitos) não conseguirão resistir até final do ano.
Porque os animais têm de ser alimentados, tratados diariamente e o seu bem-estar assegurado.
Outra consequência óbvia prende-se com o curto prazo: o da ausência de chuvas até final de agosto, já existem previsões de que setembro poderá ser mais quente e seco que o normal, veremos em outubro, mas podemos ter as culturas de outono/inverno comprometidas nas suas sementeiras e, esperamos que o milho – cuja área terá crescido 5% de acordo com o INE – não seja muito afetado na produtividade e que não aumente a nossa crónica dependência do exterior, com a vulnerabilidade que se conhece.
Ficámos igualmente a saber esta semana que a campanha dos cereais de inverno foi a segunda pior dos últimos 105 anos e que muitas culturas, como a vinha, eventualmente o olival e infelizmente tantas outras, não deixarão de sofrer com a falta de água e restrições que vierem a ser definidas.
É este o drama que vivemos, com consequências a montante e a jusante porque estamos todos ligados. Uma situação agravada pelos incêndios (a merecer uma outra reflexão) e que poderia ter sido mitigada, não fora o abandono do interior, da atividade pecuária e de silvo pastorícia. Do Mundo Rural, que vai definhando e cuja desertificação é urgente combater com estratégias coerentes – Agricultura, Ambiente, Coesão, Administração Interna, Economia, Justiça – auscultando os territórios, as pessoas que lá vivem e suas organizações, as universidades e entidades ligadas à investigação e desenvolvimento.
Alterando políticas públicas e sobretudo olhando com mais atenção para a agricultura e o agroalimentar. Assumindo que a água é uma questão estratégica e parte da nossa soberania (e segurança) alimentar. Sim, ainda vamos a tempo!
Com as alterações climáticas bem presentes, a água está a deixar de ser um problema apenas dos países do Sul da Europa, alargando-se a outras geografias (a navegabilidade de alguns rios no Norte da Europa) e Continentes (a China que atravessa uma seca extrema em algumas regiões), com impactos ao nível global e, necessariamente, geoestratégicos.
Há muito que ouvimos dizer que os próximos conflitos deverão ocorrer pela disponibilidade de água, mas pouco temos feito, enquanto Sociedade, para o enfrentar.
Não é legítimo que, uma vez mais, se tentem encontrar culpados no setor agropecuário, pelos ambientalistas, alguns partidos políticos ou a habitual opinião pública e publicada, “especialistas de bancada”, sem fazerem a mínima ideia do que falam, comparam o que é incomparável, ignorando as condições edafoclimáticas dos diferentes países ou regiões e as culturas que são produzidas nesses locais, ou o que se passa ao nível das infraestruturas de rega, as perdas, o ciclo da água, os ecossistemas e, sobretudo, o esforço que tem vindo a ser feito pelo setor agropecuário, no quadro da Agricultura 4.0 ou Indústria 4.0, onde existe uma grande preocupação com a eficiência da utilização deste recurso, cada vez mais escasso.
Para travar a ignorância, para além da revisitarmos o ciclo da água, seria conveniente olharmos para algumas Estatísticas Agrícolas e documentos relevantes, quer do Tribunal de Contas Europeu sobre a “Utilização sustentável da água na agricultura” ou “O Uso da água em Portugal”, da Fundação Calouste Gulbenkian.
Reconhecendo-se que nem tudo está bem e que há muito a melhorar, é importante contextualizar as conclusões e aferir as metodologias, quando se refere que a agricultura e a pecuária são os grandes consumidores de água (70 a 75%, conforme as fontes). No entanto, para além da utilização, convêm referir que as perdas no sistema de armazenamento, transporte e distribuição são da ordem dos 40%, temos perdas por evapotranspiração e que muita da água da chuva não é armazenada, pelo que não chega a ser aproveitada.
O facto é que desde há muito que este problema é identificado e temos de reconhecer que o regadio em Portugal tem sido relativamente bem-sucedido – veja-se o exemplo do Alqueva – quando comparamos os recenseamentos agrícolas de 2009 com 2019, tendo permitido o incremento de culturas como as fruteiras, vinha, olival, o milho, com elevados acréscimos na produtividade e competitividade. Sem esquecer que produzem para o mercado, interno e externo, indo ao encontro das necessidades e exigências dos consumidores. A mecanização e a agricultura de precisão mais que quadruplicaram, tornaram-se mais eficientes e especializadas. No entanto, mais de metade das explorações são classificadas como exclusivamente de sequeiro, representando mais de 60% da Superfície Agrícola Útil.
Por último, numa altura em que a indústria agroalimentar reforça a sua importância na indústria transformadora em Portugal, confrontamo-nos com um déficit agroalimentar de 3,8 mil milhões de €.
Dados a ter em conta na definição e implementação de uma política pública para a gestão e utilização da água.
Hoje, muitos agricultores utilizam sensores e sondas, praticam uma agricultura de precisão, rega gota-a-gota, na pecuária tem sido feito um trabalho ao nível da gestão dos efluentes, estão definidos roteiros para a sustentabilidade, escolha de animais melhor adaptados, alterações no maneio e gestão das explorações, aposta-se na economia circular, na alimentação animal é crescente a utilização da alimentação de precisão, de medidas de poupança, mais eficiência, tratamentos de água salobra, basta olhar para os relatórios de sustentabilidade que estão disponíveis.
Temos de replicar os bons exemplos e mostrá-los a toda a sociedade, avaliar e monitorizar. Os apoios públicos devem promover estas boas práticas.
As previsões não são animadoras, com situações extremas mais frequentes, mas também nos dizem que continuará a chover mais a norte que a sul, pelo que deveria ser equacionada a possibilidade de transvases e pequenas barragens ao longo do país.
É preciso olhar para todas as possibilidades, utilizar a tecnologia e meios disponíveis, não negando igualmente novas culturas, melhoradas geneticamente, não excluindo a biotecnologia ou as Novas Técnicas Genómicas.
Como bem escasso e indispensável na nossa vida, a Água deveria merecer uma abordagem mais séria e honesta, da parte de cidadãos, organizações e poder político, sem populismos nem demagogias, ou a tendência para encontrar culpados, assumindo as responsabilidades que a cada um compete e compromissos, no curto e sobretudo, a médio e longo prazo.
Não é um problema rural/urbano, mas um bem público que tem de ser gerido de uma forma eficiente e responsável por todos, pelo que urge uma campanha de sensibilização para o seu uso consciente e sustentável. Desde logo, em nossas casas.
Têm a palavra o Governo, a Assembleia da República, a sociedade civil.
Não sabemos em concreto se neste quadro de maioria absoluta e certamente com o apoio de um amplo consenso, qual a política que vai ser definida, mas era importante que o montante de 1 634 milhões de € adicionais no âmbito do PRR, fosse canalizado para responder a este desafio, essencial para o nosso futuro coletivo.
Esta é uma questão estratégica para o futuro da agricultura e da pecuária. Para o futuro da Alimentação. É de facto a água que nos alimenta e sem ela não podemos produzir.
Temos de interiorizar que a agricultura e a pecuária não gastam água, utilizam este bem para produzir alimentos.
Somos os primeiros interessados em produzir de uma forma sustentável e eficiente.
Não podemos permitir que sejam outros a construir a nossa narrativa!
Jaime Piçarra
Secretário-Geral da IACA
O artigo foi publicado originalmente em IACA.