O abandono de terrenos agrícolas nas últimas décadas transformou-se num fator que potencia a gravidade dos incêndios na Madeira, como aconteceu em outubro na zona oeste e na costa norte, alertou o professor universitário e ex-presidente da Quercus Hélder Spínola.
“Até 2010, os incêndios afetavam sobretudo as zonas de montanha. Depois passaram a afetar também áreas povoadas. Essa mudança pode estar associada às alterações no clima, mas particularmente no caso da Madeira está associada à mudança no uso do território”, disse.
Em declarações à agência Lusa, Hélder Spínola explicou que, no passado, a atividade agrícola em terrenos envolventes às zonas habitacionais protegia-as dos incêndios, mas ao serem progressivamente abandonados ao longo dos anos foram ocupados por uma “vegetação muito amiga do fogo”.
Grande parte do concelho da Calheta, na zona oeste da Madeira, estava neste estado quando deflagrou o incêndio em 11 de outubro, que depois se estendeu ao município vizinho do Porto Moniz, já na costa norte da ilha, e lavrou durante cinco dias.
As autoridades regionais remeteram a apresentação do balanço final dos prejuízos para hoje, mas a Câmara Municipal da Calheta, o concelho mais extenso da região autónoma, estimou já que arderam 70 quilómetros quadrados, cerca de 50% do seu território. Quatro pessoas ficaram desalojadas e duas casas totalmente destruídas, num total de 14 habitações afetadas.
“Se nós quisermos mudar a situação, vamos ter de intervir no território. Precisamos de ter novamente atividade nesses espaços”, disse Hélder Spínola, que leciona disciplinas na área da biologia e do ambiente na Universidade da Madeira.
Um incêndio como o que lavrou na Calheta tem impacto a vários níveis, sendo que no imediato o solo ficou desprotegido e mais propenso a deslizamentos, ao mesmo tempo que a queima contribuiu para as emissões de dióxido de carbono e outros poluentes.
“Há também uma perda do próprio solo e à medida que o solo vai empobrecendo e se degradando o tipo de vegetação que nele se desenvolve é mais agressiva, habitualmente uma vegetação invasora”, explicou o professor, destacando também efeitos ao nível da biodiversidade, pois o fogo eventualmente destruiu pequenos núcleos e alguns exemplares dispersos de espécies nativas, que são cada vez mais raros na costa sul da Madeira.
“É preciso olhar para o território e dar-lhe uma utilidade”, reforçou, apontando para a importância da criação de faixas de gestão de combustíveis, através da reintrodução da atividade agrícola, da pastorícia e de espécies nativas de árvores, como as que predominam na floresta laurissilva, que são mais resistentes ao fogo.
O ex-presidente da Quercus – Associação Nacional de Conservação da Natureza alertou, por outro lado, para o facto de o Plano Regional de Ordenamento Florestal da Região Autónoma da Madeira, em vigor desde 2015, prever a elaboração de um Plano Regional de Defesa da Floresta Contra Incêndios, que ainda não foi executado.
“Se existe, nunca foi tornado público, nem posto à discussão”, disse, realçando que esse instrumento é fundamental para definir as faixas de gestão de combustíveis, “única forma” de a sociedade se defender contra os cenários de incêndio.
Além da atividade agrícola e da reflorestação com espécies autóctones, Hélder Spínola defende a introdução da pastorícia no processo de organização do território, vincando que, tal como a agricultura, poderá contribuir para a proteção contra incêndios e simultaneamente para uma menor dependência do exterior em termos alimentares.
No entanto, avisou, “o gado não pode andar à solta na serra”, pelo que a atividade deve ser ordenada e controlada, podendo mesmo desenvolver-se em terrenos agrícolas agora abandonados nas áreas de intersecção com a floresta.
“Nós podemos ter aqui uma espécie de desafio regional, ainda mais que todos temos a bandeira da autonomia, de aproveitar novamente o nosso potencial agrícola e também a pastorícia”, disse.
“Os incêndios não vão deixar de acontecer e nós precisamos de ter o território preparado para que quando isso aconteça não se transforme num problema”, sublinhou, reconhecendo, no entanto, que o facto de a propriedade privada na região ser de pequena dimensão e repartida por inúmeros proprietários constitui um obstáculo no processo, embora não seja inultrapassável.