Agricultores e proprietários de terrenos junto à ria de Ovar acusaram hoje a sociedade Polis Litoral Ria de Aveiro, dona da requalificação em curso nessa área lagunar, de cometer vários erros na intervenção, apropriando-se de terras privadas.
As acusações surgiram numa manifestação que levou ao largo da Câmara Municipal de Ovar cerca de 30 lavradores das zonas lagunares da Marinha e da Ribeira, numa iniciativa da UABDA – União de Agricultores e Baldios do Distrito de Aveiro (que resulta da extinta Associação da Lavoura do Distrito de Aveiro).
“Já perdemos mais de 400 hectares de terra que antes eram cultivadas e agora passaram para o domínio marítimo. [Os técnicos da obra] Estão a usar e a abusar dos terrenos privados, e andam por cima do milho como se fosse tudo deles, quando podiam passar a 10 ou 15 metros e não estragavam nada”, disse António Valente, agricultor com uma das maiores propriedades na zona da Marinha.
Albino Silva, da direção da UABDA, acrescenta: “Este projeto está a roubar dezenas e dezenas de reserva aos agricultores. Está a deixar centenas de hectares submersos que antes eram cultivados”.
Mário Rui Natária, porta-voz da associação de moradores da Marinha, admite que essa ocupação de terra alagadas tenha uma intenção específica: “Quando é libertada área de reserva ecológica em sede de Plano Diretor Municipal, as entidades oficiais depois têm que as repor indo buscá-las a qualquer lado. Como foram libertadas áreas ecológicas aqui em Ovar para construção, isso pode ser uma justificação para o que estão a fazer agora”.
Para essa perspetiva contribui uma recente imposição legal que o representante dos moradores da Marinha vê com desconfiança e encara como uma complexidade burocrática destinada a “desviar” terrenos. “Sorrateiramente, foi feita uma lei que diz que, para serem reconhecidos como proprietários, os donos destas terras – que andam a pagar impostos por elas há anos e já as receberam dos avós e bisavós – têm que fazer prova de propriedade desde [a década de] 1860”, disse.
Em termos mais práticos, as preocupações dos agricultores prendem-se com a captação pela Polis de áreas que podem atingir os 100 metros de distância entre o limite do terreno cultivado e o ponto máximo atingido pelas águas na maré alta. Na sua maior parte, esses 100 metros seriam antes cultivados e agora, com as alterações introduzidas pela Polis, deixam de estar na posse dos lavradores e passam para o domínio público.
Já noutros pontos da ria de Ovar as críticas devem-se à instalação de taludes que, fixos a uma cota considerada pelos lavradores como errada, ficarão submersos pelas águas quando essas subirem, o que, consequentemente, levará a que os campos semeados sejam invadidos pelas marés e a que o sal marinho destrua as respetivas colheitas.
“Foi o que aconteceu a semana passada com as marés vivas, quando a água entrou pelo campo e me estragou toda a colheita de milho”, notou António Valente, antecipando que, “com as cheias e temporais [de inverno], vai tudo ser destruído outra vez”.
Os associados da UABDA reclamam, por isso, a intervenção da Câmara Municipal de Ovar junto da Polis, para que os erros do projeto sejam corrigidos – até porque a entidade responsável pela obra já foi alertada para essas falhas “há um ano, no período de consulta pública” que antecedeu o arranque das obras. “Resposta? Zero!”, garantiu Mário Rui Natária. “A Polis nega-se a falar connosco”, reforçou António Valente.
O presidente da Câmara Municipal de Ovar, Salvador Malheiro, acompanhou a manifestação e, antes de reunir com os agricultores, concordou que se está a assistir a “uma nacionalização encapotada de terrenos privados pelo Estado”. Manifestou-se também contra a legislação que obriga os donos de terrenos alagados a fazerem agora prova de propriedade dos mesmos desde 1864, quando se definiu o regime de domínio hídrico público.
O autarca admite outros erros no projeto da Polis, cujo orçamento é “superior a 20 milhões de euros”, mas, defendendo que alterar o caderno de encargos a meio da execução da empreitada “poderia dar origem a uma guerra jurídica” que acentuaria o atraso de uma obra pela qual a população esperou “mais de 20 anos”, remete para futuras intervenções quaisquer retificações aos trabalhos em curso.
Contactada pela Lusa, a Polis não comentou as acusações de hoje e remeteu esclarecimentos para um anterior comunicado, em que afirmou que “A obra tem sido desenvolvida em estreita articulação com as populações envolvidas (…) e têm sido inúmeros os contactos com os proprietários, sendo que a intervenção se desenvolve integralmente em parcelas de Domínio Público Marítimo, ou seja, domínio do Estado”.