Hoje, Dia Mundial da Alimentação, David Gouveia, Conselheiro Agrícola da Embaixada de Portugal em Roma e Representante Permanente Adjunto junto das Agências das Nações Unidas, alerta que “a transição verde, digital e geracional só será possível se os agricultores forem vistos — e se virem a si próprios — como protagonistas da transformação”.
Todos temos um papel a desempenhar na transformação dos sistemas agroalimentares rumo à segurança alimentar (food security). Qual é o seu papel nas suas funções atuais?
David Gouveia: O Dia Mundial da Alimentação, celebrado a 16 de outubro, é sempre um momento especial a nível mundial, que estou a viver pela primeira vez aqui em Roma. A FAO mobiliza uma série de iniciativas — debates de alto nível, exposições e eventos com escolas e comunidades — que lembram que a segurança alimentar é um desafio global, mas também uma responsabilidade individual. Este ano, o tema volta a sublinhar a urgência de transformar os sistemas agroalimentares para garantir dietas saudáveis, acessíveis e sustentáveis num contexto de mudanças climáticas e desigualdades crescentes.
Neste enquadramento, o meu papel, enquanto Conselheiro Agrícola da Embaixada de Portugal em Roma e Representante Permanente Adjunto junto das Agências das Nações Unidas com sede em Roma (FAO, PAM e FIDA), tem várias dimensões. Por um lado, integro a equipa que representa Portugal no chamado bloco europeu, ou mais informalmente ‘Team EU’, onde os Estados-Membros trabalham de forma coordenada. As posições e mandatos da União Europeia são preparados no Conselho, em Bruxelas, e articulados depois em Roma — o que implica uma constante coordenação com Lisboa, com os Ministérios dos Negócios Estrangeiros e da Agricultura e do Mar, os respetivos organismos e com outras entidades nacionais relevantes, para assegurar que as posições portuguesas estão bem refletidas nas negociações multilaterais e nas declarações conjuntas da UE.
Por outro lado, há uma dimensão mais técnica: intervir nos debates técnicos, e conhecer a disponibilidade de informação para as perspetivas de evolução mundial, por exemplo no que respeita ao debate sobre sistemas de produção pecuária e a sua transformação sustentável, que decorre no âmbito da FAO.
Mas também a nível mais bilateral, local, estou a conhecer o setor agrícola italiano — as suas políticas, as suas organizações, a regulação e a legislação — permite identificar práticas ou modelos que possam inspirar melhorias no contexto nacional. O diálogo com as instituições italianas e com os atores do setor é muito positivo e oferece lições úteis sobre legislação, inovação, digitalização, gestão territorial e promoção e controlo de produtos, por exemplo ao nível da origem e qualidade certificada.
Em suma, o meu papel é fazer a ponte entre o nível global e o nacional, entre a coordenação política e a prática, garantindo que Portugal participa ativamente no debate internacional sobre segurança alimentar, mas também retira aprendizagens concretas que possam reforçar o nosso próprio sistema agroalimentar.
A FAO prevê que será necessário aumentar a produtividade agrícola em 15% para acabar com a subnutrição e adotar tecnologias de forma generalizada para reduzir as emissões em 7%, até 2034. Como poderá o mundo chegar a este objetivo, considerando que existe um impacto cada vez maior dos fenómenos climáticos extremos na redução da produtividade agrícola?
David Gouveia: Apesar dos enormes desafios — conflitos, alterações climáticas e desigualdades crescentes — há sinais positivos que merecem ser sublinhados. A fome no mundo tem vindo a diminuir de forma gradual e consistente em várias regiões, embora de modo muito assimétrico: persistem níveis muito elevados de subnutrição em partes da África Subsaariana e do Sul da Ásia, enquanto noutras regiões se observam ganhos expressivos no acesso a dietas mais equilibradas e nutritivas.
Estamos, no entanto, perante uma transformação tecnológica relevante. Hoje dispomos de ferramentas científicas e digitais que permitem aumentar a produção alimentar a um ritmo superior ao do crescimento das respetivas emissões. A agricultura de precisão, a biotecnologia aplicada ao melhoramento genético, a digitalização das práticas agrícolas e a monitorização climática em tempo real estão a permitir produzir mais com menos — menos água, menos fertilizantes de síntese, menos energia. É uma mudança estrutural que está a reconfigurar a relação entre produtividade e sustentabilidade.
Claro que os fenómenos climáticos extremos continuarão a testar essa capacidade. É por isso que a adaptação deve ser pensada de forma sistémica, com enfoque nos recursos naturais. No caso de Portugal, a água é um fator crítico. A forma como a gerimos — garantindo disponibilidade e eficiência no seu uso — determinará a resiliência futura da agricultura portuguesa. Isso implica não só investir em infraestruturas e inovação, mas também promover uma cultura de uso responsável, onde a água é vista como um bem estratégico.
Em suma, chegar aos objetivos da FAO não será apenas uma questão de ‘produzir mais’, mas de produzir melhor: com base em conhecimento, tecnologia e gestão eficaz dos recursos.
«A agricultura de precisão, a biotecnologia aplicada ao melhoramento genético, a digitalização das práticas agrícolas e a monitorização climática em tempo real estão a permitir produzir mais com menos»
Num artigo de opinião seu, referiu que “precisamos de visão, estratégia e instrumentos que promovam a capacidade de resposta para que a agricultura seja um motor de sustentabilidade e de segurança alimentar”. Quais deverão ser a visão, a estratégia e os instrumentos da União Europeia?
David Gouveia: Em primeiro lugar, agradeço a referência ao artigo, e assinalo que teve por base o Relatório OCDE-FAO Outlook 2027-2034. Não são meras opiniões pessoais.
A visão tem de ser de médio e longo prazo, mas com resultados visíveis no imediato — e isso é, talvez, o maior paradoxo que enfrentamos. Precisamos de políticas que deem confiança aos agricultores e tempo para planear, mas que ao mesmo tempo respondam já às pressões do mercado, às exigências ambientais e às expectativas da sociedade. É um equilíbrio difícil, mas essencial.
A estratégia, na minha perspetiva, tem de assentar na dignificação da atividade agrícola, no reforço da sua atratividade. A agricultura é, antes de tudo, uma atividade profissional exigente: requer conhecimento técnico, capacidade de gestão, acesso a tecnologia e um forte compromisso com a inovação. Não é uma atividade de subsistência — é um setor económico e estratégico que garante o abastecimento alimentar e a segurança das sociedades.
Não podemos querer rejuvenescer o setor, atrair jovens e talento, se só falamos de dificuldades, de crises e de falta de apoios. Isso cria uma perceção desmotivadora, que não corresponde totalmente à realidade. Há, em Portugal e na Europa, milhares de exemplos de sucesso — de agricultores inovadores, empresas, cooperativas e organizações dinâmicas, sistemas produtivos sustentáveis em todas as vertentes económica, social e ambiental, e produtos de excelência com reconhecimento internacional. Esses casos têm de ser valorizados e comunicados, porque são eles que inspiram mudança e demonstram que a agricultura tem futuro.
Portanto, a estratégia europeia deve combinar visão de longo prazo, reconhecimento do papel estratégico da agricultura e um discurso positivo sobre o setor. A transição verde, digital e geracional só será possível se os agricultores forem vistos — e se virem a si próprios — como protagonistas da transformação, e não como vítimas dela.
No fundo, devemos lembrar que os agricultores são, simultaneamente, produtores de alimentos e cuidadores do território. Garantem a segurança alimentar, enquanto preservam paisagens, ecossistemas e modos de vida que são parte essencial do património europeu.
«A estratégia europeia deve combinar visão de longo prazo, reconhecimento do papel estratégico da agricultura e um discurso positivo sobre o setor»
A proposta da Comissão Europeia para a Política Agricola Comum, inserida no novo Quadro Financeiro Plurianual (MFF) da UE, para 2028-2034, é um bom ou um mau instrumento de política para a próxima década?
David Gouveia: Nas minhas atuais funções não estou a acompanhar diretamente a proposta nem a sua discussão ao nível das instâncias europeias, mas mantenho atualizada a informação sobre a posição nacional.
Nesse sentido, pelo que tenho acompanhado, a proposta da Comissão Europeia para a PAC 2028-2034 é um ponto de partida com boas intenções na teoria, mas que levanta sérias preocupações, como o Ministro da Agricultura tem sublinhado. A fusão dos fundos agrícolas e de coesão pode traduzir-se em cortes significativos para Portugal e criar desequilíbrios entre Estados-Membros, favorecendo os que têm maior capacidade orçamental.
Compreende-se a necessidade de equilíbrio orçamental europeu face a novas prioridades, como a defesa, a transição digital e energética. Mas é importante recordar que a alimentação é também uma forma de defesa e de segurança, e de coesão territorial — sem sistemas agroalimentares fortes e equilibrados, não há estabilidade social nem soberania europeia.
Precisamos de uma PAC que garanta previsibilidade, justiça e solidariedade — não de uma reforma que renacionalize políticas que se querem ‘Comuns’. Há aspetos positivos, como a ênfase na sustentabilidade e na inovação, mas tudo dependerá do resultado da negociação. O essencial é assegurar que a PAC continue a ser um verdadeiro instrumento de segurança alimentar, coesão territorial e estabilidade para quem produz.
«Precisamos de uma PAC que garanta previsibilidade, justiça e solidariedade — não de uma reforma que renacionalize políticas que se querem ‘Comuns’»
A FAO defende que um sistema de comércio baseado em regras continua a ser essencial para a segurança alimentar mundial e os meios de subsistência rurais. Mas o que vemos cada vez mais é que a cooperação internacional dá lugar ao protecionismo. Como deve a União Europeia, e Portugal, posicionar-se neste cenário geopolítico?
David Gouveia: A visão da FAO assenta em sistemas de comércio previsíveis, baseados em regras, que são fundamentais para preços estáveis, diversidade de oferta e meios de subsistência rurais; quando o protecionismo sobe, aumentam as vulnerabilidades alimentares globais. Não podemos deixar de referir o papel que a própria FAO tem na produção de informação sobre mercados, sistemas, índice de preços, que são muito importantes na transparência e regulação a nível mundial.
A ideia de um mundo bipolarizado entre, por um lado, países desenvolvidos apologistas de uma globalização e do mercado mundial, e, por outro lado, países em desenvolvimento promotores do protecionismo para salvaguarda de economia interna, está desatualizada. O que se verifica agora é uma tendência para olhar para os países em desenvolvimento como potencial para investimento, com população jovem, e capacidade de modernização e de aquisição de competências. Neste mundo, o investimento no desenvolvimento é a nova forma de globalização, e existem já várias dinâmicas nesse sentido como o Global Gateway da UE.
Da minha perspetiva, a abordagem à realidade atual deve combinar investimento na capacidade de produção global, em contexto de mercado, mas com firmeza por regras e com realismo estratégico, através de um comércio aberto e previsível. A UE deve continuar a defender regras multilaterais que evitem riscos comerciais repentinos, que possam originar aumentos de preços e de insegurança alimentar, e também garantir qualidade e reciprocidade, com exigência de altos padrões europeus (sanidade, ambiental), mas sem usar esses padrões como barreiras protecionistas disfarçadas, para não incorrer em retaliações; isto exige negociar de forma transparente e proporcional, com capacidade de avaliar os ciclos de produção fora do espaço europeu (Life Cycle Assessment), pois nem todos os standards se podem determinar a partir do produto que chega às nossas fronteiras.
Por fim, não esquecer a salvaguarda da segurança de abastecimento e diversificação. É prudente reforçar resiliência interna (diversificação de fornecedores, cadeias resilientes e mercados funcionais, cadeias curtas), sem procurar o protecionismo automático.
O artigo foi publicado originalmente em Syngenta.