Seguimos a lã até ser pano. O tecido grosseiro que aquecia os pastores da Serra da Estrela, e que se continua a produzir. Das bordaleiras ao burel, com escala no lavadouro de lãs da Guarda, único no país, a história de como se luta por preservar uma raça de ovelha, um modo de vida e uma indústria.
Os fios de lã a sair das bobines da urdideira são um monumento. É neste processo que a lã começa a ser teia, que depois há de ser colocada num tear e fazer nascer o burel, fazenda ancestral, que servia de casa ambulante aos pastores da Serra da Estrela. Mais de uma centena de bobines a desfazer-se em quilómetros de fio a caminho do tecido. De certa forma este momento, em que as lãs que irão ser um pano se enrolam todas juntas, lado a lado, num enorme cilindro que será colocado no tear, simboliza todo o ciclo da lã. Das curiosas ovelhas bordaleiras que dançam nos pastos pelas mãos de pastores e pastoras dedicados, ao lavadouro de lãs da Guarda, escolhida pelas rápidas mãos, depois várias vezes enxaguada e seca. Até aqui. Vai ser manta, casaco. Abrigo.
1. OVELHAS E PASTORES: “ISTO É A LÃ E A NEVE”
Têm uns olhos enormes castanho-claro amarelados, uma expressão doce e curiosa. No alto da cabeça de machos e fêmeas saem os cornos, como se fossem grandes tiles retorcidos. As patas são finas, especialmente se vistas por esta altura, em que transportam enormes almofadas – uns três quilos de lã. A Bordaleira, raça autóctone de ovelhas da Serra da Estrela, sustento de famílias inteiras, tilinta nos pastos há milhares de anos. Com elas, os inseparáveis pastores e pastoras. Ter um rebanho é profissão a tempo inteiro sem folga, muito menos férias, com folias poucas, e ainda assim com a ovelha de braçado (como a empreitada-festa da tosquia que já se prenuncia).
“O meu pai nem à escola me deixou ir. Comecei a guardar ovelhas aos sete anos. E digo para o meu neto de 14 anos, eu com a tua idade já trabalhava tanto! O teu bisavô fazia-me trabalhar tanto! Ele nunca fez nada na vida, tem 14 anos e é só comer e beber e passear e jogar à bola. E estudar, pronto”. Assim de uma penada, Manuel Neves, 75 anos, conta a história. “Antigamente era só trabalhar, trabalhar, trabalhar. De sol a sol. E fome, havia fome. Era só as batatinhas, o que dava a terra e os ovitos, e o queijito e o porquito. Agora matam-se os porcos e a gente tem as arcas e tem as coisas frescas, mas antigamente ia tudo para uma salgadeira de madeira de castanho e nós depois comíamos assim do sal”.
A casa onde mora na aldeia da Corujeira é a mesma onde viveu com os pais, que se tornou sua depois de comprar as quotas-partes dos irmãos, uns estão para a América, outro para o Canadá. Telhado novo, paredes de granito. No hall de entrada onde está uma manta para o Figo, o rafeiro que com ele guarda o rebanho de 130 ovelhas. A cozinha já não tem vestígios da vida de pobreza. É dominada por uma grande mesa de pedra, que gosta de ver cheia, de comida e de gente, e onde tira um café da nespresso antes de irmos até à corte, o terreno murado onde estão as Bordaleiras. “Já estou velhinho e não quero outra raça. Acabar com elas não acabo, só quando já não puder arrastar-me destes sofás”. Diz que está a ficar cansado, pastor a vida toda, empregado 33 anos na fábrica de lãs nos Coelhos.
“Esta é a história, d’A Lã e a Neve”, diz Miguel Rainha. É ele quem organiza as tosquias e recolhe a lã para a Burel, em Manteigas. A história, escrita por Ferreira de Castro, continua mais ou menos viva. A mãe de Horácio teve de empenhar os cobertores da família para poderem comer. Hoje a pobreza não será tão pobre.
Seguimos para a corte, na Ribeira de Valhelhas, vale verde e fértil onde a água canta depois de um inverno que deixou a terra ensopada. As ovelhas seguem o pastor, num bailado de lã e badalos, campo fora, estrada fora, até à corte para onde correm chamadas pela erva fresca. O sr. Manuel aponta uma, de cabeça no ar, quando todo o rebanho aspira o verde. “Está desconfiada, veja só, é como os humanos. Tão desconfiada que nem come”. Manuel liga a vedação elétrica que mantém o rebanho confinado aquele terreno. “Chamam-lhe o pastor”, diz bem-disposto sobre o dispositivo que lhe permite subir à aldeia para acabar de plantar os morangueiros. Despede-se em jeito de epitáfio: “Isto é como os jogadores de futebol que vestem a camisola. Eu vivi disto e vou morrer disto”.
Em maio, os dois homens têm encontro marcado. Miguel Rainha voltará à Corujeira na altura das tosquias. É ele quem faz a ponte entre os pastores e a Burel Factory, fábrica de lanifícios de Manteigas (uma das duas que ainda tece burel), selecionando a lã que há de chegar aos teares. O burel está na moda e a lã que há meia dúzia de anos valia 35 cêntimos o quilo, está agora a €1,20 ou mais, dependendo da qualidade. “Isso foi um trabalho que a Burel fez, valorizou a lã, o trabalho dos agricultores, e preserva as raças autóctones”.
Miguel Rainha é programador artístico há três décadas. Natural da Covilhã, tem fortes ligações à terra e às gentes. Esta “profissão” de escolher lãs foi nascendo de um projeto que fez na aldeia de Maçaínhas, para salvar o tradicional cobertor de papa, feito com lã de ovelhas das raças Churra do Campo e Mondegueira. “Eu tenho uma profissão ligada à cultura, é um prolongamento natural”. A sua paixão pelas pessoas e seus modos de vida levou-o a criar um projeto, a Trans Húmus, onde faz peças de teatro com os pastores, oficinas de queijo, e inusitadas iniciativas. “Já dei início a coisas que parecem normais e tradição e não são. Por exemplo a festa da transumância, os chocalhos, em Alpedrinha. Eu sou o pai dos chocalhos.”
O ciclo da lã vai-se renovando, aos poucos. No alto da Estrela, nos casais do Folgosinho, Ana Teresa Matos e André Marques cuidam do rebanho de 20 Bordaleiras, e querem transformar o seu terreno de cem hectares numa paisagem biodiversa. O fogo do verão poupou-lhes, por um triz, a casa e as ovelhas, mas reduziu a cinzas a terra. Voltaram a arregaçar as mangas. Têm 31 anos e estão há quatro naquele fim de mundo, […]