A destilação de vinho está quase aí, faltando o buril legislativo dum acto delegado da União Europeia. Há cerca de dois meses, tínhamos vindo a este tema num artigo no Agroportal, e hoje voltamos, divulgados que estão os seus principais contornos no artigo do Dinheiro Vivo e no despacho da Lusa. Será extensiva a vinhos DO e IG tintos e rosados de todas as regiões vitivinícolas. Será financiada por fundos da UE.
As negociações não terão sido fáceis porque a vontade prevalecente da França, estava solidamente fundamentada na óptica dos interesses de Bordéus e doutras regiões de Além-Pirinéus e a um pequeno país como o nosso é difícil demonstrar alternativa. Poder-se-ia pensar que, precisamente por contarmos tão pouco para as contas finais, ser-nos-ia simples encaixar as nossas pretensões. O facto é que o não é e por um motivo muito português: não basta argumentar, é necessário ter números de sustentação dos argumentos e explicação analítica dos números apresentados, passos necessários para que, numa negociação, seja credível cada uma das pretensões. Raramente os temos com a solidez necessária e por uma omissão grave no contexto vitivinícola nacional.
Queremos crer que todas as regiões vitivinícolas apresentaram ao IVV os números pertinentes: existências, estimativas de evolução de stocks, expectativas do preço médio (ou intervalos de preços) a pagar por litro de vinho a destilar, previsão (ainda que muito falível) da vindima 2023. E deveria ser fácil a cada uma das regiões fazê-lo. Sabemos que o não é para algumas. Não o é porque falta a Portugal um organismo de apoio ao sector como o que existe em Espanha, o Observatorio Español del Mercado del Vino, que permanentemente recolhesse, tratasse e dispusesse de dados. Para além do trabalho perito em si, suscitaria em diferentes níveis (nas empresas produtoras e comercializadoras, nas CVRs, nos Institutos, nos gabinetes dos órgãos de decisão política) haver gente formada em gerar, analisar e trabalhar esse manancial de informação. Com uma tal capacidade de recolha e geração de dados, o custo de funcionamento seria recuperável pelos benefícios que traria às mesmas empresas e aos mesmos organismos que os carecem para vender, exportar, taxar, negociar com raciocínios baseados em números e não apenas em ideias.
Também queremos crer que o IVV pôde obter, de todos os players interessados, tudo que lhe permitiu chegar a conclusões numéricas a tempo e que tem já um valor consensual para o pagamento por litro. E mais: que, graças às informações das destiladoras e dos hectolitros de existência nas empresas produtoras, das quantidades de stocks a destilar, pôde já montar um fluxograma fácil para que todo o processo, a ser articulado com o IFAP e com as CVRs, decorra sem problemas de candidatura, análise, controlo, processamento e pagamento. Queremos crer… e ficamo-nos por aqui. Porque o IVV tem o seu trabalho, dizemos, heróico trabalho (por tão poucos fazerem o labor que competiria a muitos), apoiado em escassos recursos humanos que ultrapassam com uma competência rara as dificuldades da sobrecarga, e produzem um resultado com profissionalismo e grande qualidade. Mas que, compreensivelmente, tem de se ficar pelo essencial, vedada que tem estado a possibilidade de contratação dos quadros necessários para a formação suficiente de novas equipas que permitiriam outra amplitude. Mesmo assim, é admirável o esforço de captação e tratamento de informação a empresas e entidades – o que seria se fosse efectuado em grande escala e com maiores meios!?
As destilações de vinho, raras desde a PAC, normalmente reúnem o consenso do sector e são motivo de aplauso. Sujeitas a críticas, evidentemente, dos conhecedores do métier e que gizariam o processo de outro modo. Para além destes, mereceriam reflexão alguns detalhes – que não são de somenos – na implementação da medida. Porquê, não incluir os brancos? Os franceses assim o determinaram desde o início e a Comissão apenas está na disposição de financiar os tintos e rosés, bem sabemos. Neste caso, porque não, juntar ao financiamento da Comissão uma componente nacional que permitisse pagar a destilação dos brancos? Por que se continua numa política de cativação dos valores cobrados nas taxas e a transitar saldos duns exercícios para os outros e não se esgotam tais saldos em medidas no sector (nesta destilação, num Observatório Português do Mercado do Vinho, no refrescamento e ampliação dos quadros do IVV, em estudos de prospectiva – que em Portugal são poucos, caros e pouco fundamentados – porque pouco financiados…).
A medida da destilação é uma medida temporária com um resultado muito limitado em Portugal, sem dúvida útil para a resolução pontual de alguns problemas em empresas e um bom instrumento psicológico e material para o arranque da próxima vindima e impulso no preço a pagar por quilograma de uvas. Se for ainda aproveitada para reflexão, para estudo de métodos e prospectiva do sector, então esta medida de destilação pode e deve ser muito mais útil. Saibamos destilar os números do planeamento e compará-los com os do resultado – e decidir em consequência, para o futuro.
Consultor e escritor, ex Director Regional de Agricultura e Pescas do Norte, 2011-2018; ex Vice-Presidente do IVV, 2019-2021