No Dia Nacional da Água, que hoje se assinala, a ZERO – Associação Sistema Terrestre Sustentável revela que Portugal enfrenta um quadro de incumprimento grave e persistente das suas obrigações europeias na gestão hídrica. Uma análise aos Planos de Gestão de Região Hidrográfica (PGRH) do 3.º ciclo (2022-2027) demonstra que 64% das albufeiras continentais, associadas a grandes barragens (Altura> = 15 m ou Altura >= 10 m e Volume >= 1 hm3) não cumprem os requisitos de definição e libertação de caudais ecológicos (CE).
Face a esta falha estrutural, que viola o ponto 1 do Artigo 4.ºda Diretiva-Quadro da Água (DQA) e compromete o futuro dos ecossistemas fluviais, a ZERO formalizou, no passado dia 29 de setembro, uma queixa formal junto da Comissão Europeia, exigindo o início imediato de um procedimento de infração contra Portugal pela não implementação de caudais ecológicos e apela agora ao Governo pela imposição de uma moratória à construção de novas barragens no país.
Existe um incumprimento sistémico em 64% das albufeiras
A análise realizada pela ZERO às 121 Massas de Água Fortemente Modificadas (MAFM) expõe o falhanço da política hídrica nacional:
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50 albufeiras (41%) não possuem qualquer regime de caudal ecológico definido;
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28 albufeiras (23%) têm o regime definido, mas sem libertação efetiva e verificável do caudal;
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TOTAL: 64% das albufeiras (78 de 121) estão em incumprimento no que respeita à definição e libertação de CE.
O caudal ecológico é um regime legalmente exigido pela DQA e pela Lei da Água (Lei n.º 58/2005) para assegurar o fluxo mínimo de água a jusante das barragens, essencial para manter a conservação dos ecossistemas aquáticos e ripícolas. A sua ausência compromete a capacidade de autodepuração dos rios, a qualidade da água e a saúde dos ecossistemas, o que é agravado pelo facto de apenas 7,4% das albufeiras disporem de dispositivos de transposição de peixes.
Sinal de alarme de um “termómetro biológico”: toupeira-de-água agrava estatuto de ameaça
As consequências deste incumprimento legal vão além do plano administrativo, manifestando-se no colapso da biodiversidade aquática. Exemplo disto é o declínio em 30% da área de ocorrência de Toupeira-de-água (Galemys pyrenaicus) em Portugal, nos últimos 10 anos, que veio contribuir para o agravamento do seu estatuto de ameaça, passando da categoria VULNERÁVEL (VU) para a categoria EM PERIGO (EN), no Livro Vermelho dos Vertebrados, e que serve como um indicador biológico crítico do fracasso na gestão da água, neste caso nas bacias do centro e norte de Portugal – sobre esta situação, consultar mapa no final deste comunicado.
A sobrevivência desta espécie endémica e rigorosamente dependente de corredores aquáticos saudáveis está diretamente ameaçada por duas causas principais, ambas resultantes da má gestão dos recursos hídricos e da má implementação DQA:
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Fragmentação fluvial: a Toupeira-de-água, um pequeno mamífero, possui uma capacidade quase nula de se mover através do meio terrestre ou de transpor as barreiras criadas pelas barragens. Estas obras hidráulicas conduzem a subpopulações pequenas e isoladas, promovendo o isolamento genético e a regressão da espécie nas suas áreas de distribuição.
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Alteração do regime hidrológico: a falta de caudais ecológicos, pela sobre-exploração dos recursos hídricos e pelas descargas abruptas promovidas pelas barragens, elimina ou reduz drasticamente a disponibilidade de alimento (macroinvertebrados aquáticos) e destrói o habitat deste animal.
Moratória torna-se um imperativo para travar o agravamento da situação atual
A ZERO sublinha a contradição estratégica do Governo português em continuar a promover e financiar ativamente projetos de novas barragens, enquanto falha no cumprimento da DQA em mais de 60% das infraestruturas já existentes.
A moratória imediata à construção de novas barragens é o único meio eficaz para forçar uma reavaliação estratégica da gestão hídrica, que atualmente:
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Prioriza a agricultura intensiva, responsável por mais de 70% do consumo de água do país.
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Perpetua a dependência exclusiva de águas superficiais e subterrâneas e ignora práticas sustentáveis, como uma maior circularidade no uso da água, aumentando a vulnerabilidade à seca e às alterações climáticas.
Canaliza fundos públicos para projetos controversos, como o Empreendimento de Aproveitamento Hidráulico de Fins Múltiplos do Crato (Barragem do Pisão), cujo financiamento foi confirmado e transitou do PRR para o Orçamento de Estado (222.2M€), apesar das fortes críticas ambientais e da pendência de providências cautelares.
A construção de novas barreiras, que aumentam a fragmentação e a pressão sobre ecossistemas já degradados, é manifestamente incompatível com o objetivo legal de alcançar o bom estado ecológico dos rios até 2027 e, muito provavelmente, com os objetivos da Lei do Restauro da Natureza, para a qual o nosso país vai ter que dar um contributo significativo no esforço europeu de restaurar o curso natural dos rios numa extensão de pelo menos 25.000 km em relação a 2020, ano da adoção da Estratégia de Biodiversidade da UE para 2030.
Pedidos à Comissão Europeia e recomendações à APA
Perante o quadro de incumprimento, a ZERO exige uma atuação urgente em dois níveis:
À Comissão Europeia (no âmbito da queixa apresentada):
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Iniciar de imediato um procedimento de infração contra Portugal nos termos do Artigo 258.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.
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Exigir que todo o financiamento europeu seja estritamente condicionado à execução plena e verificável das obrigações da Diretiva-Quadro da Água.
Ao Governo português e à Agência Portuguesa do Ambiente (APA):
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Implementar uma moratória imediata à construção de novas barragens e grandes obras hidráulicas, incluindo o Pisão, por forma a que haja uma avaliação séria e rigorosa do interesse público associado a cada um dos projetos.
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Assegurar a definição e libertação imediata e efetiva dos caudais ecológicos nas albufeiras que se encontram em incumprimento, garantindo o financiamento necessário bem como mecanismos de monitorização transparentes e fiscalização rigorosa.
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Adotar uma política de gestão da água mais equilibrada, colocando a saúde dos ecossistemas e a resiliência climática no centro das decisões.
Fonte: ZERO