Na semana em que realizámos as habituais Jornadas de Alimentação Animal, este ano na sua XIV edição, com o tema da Inovação & Nutrição de Precisão, sendo inevitável a discussão das novas tecnologias, da digitalização e o papel da IA na competitividade e sustentabilidade da atividade pecuária, da qual a Indústria da Alimentação Animal é parte integrante (e fundamental), assistimos a um aumento nas tensões internacionais, com a Assembleia-Geral da ONU a mostrar o que todos já sabemos: estamos perante uma nova ordem mundial, ou pelo menos uma ordem diferente e a uma firme vontade de colocar em causa, pela humilhação ou pela imposição de “novas narrativas”, as organizações supranacionais.
Neste quadro geopolítico cada vez mais complexo e instável, contraditório e volátil, as ameaças à paz na Europa são uma realidade que temos de levar muito a sério, e as tentativas de criar uma divisão na União Europeia e no seio da NATO fazem parte de uma estratégia à qual não podemos ficar indiferentes. Aliás, os acontecimentos desta semana, os ciberataques, os drones, os testes aos limites de intervenção da NATO pela Rússia ou as declarações quer do Presidente Trump, quer de outros líderes mundiais e mesmo do Kremlin, aí estão para nos lembrar de que estamos perante tempos e memórias nunca vividos, pelo menos na minha geração.
Perante tudo isto, quais as respostas que têm sido dadas pela União Europeia? O que fizemos, entretanto, com o famoso relatório Draghi ou o Diálogo Estratégico sobre a Agricultura e Alimentação? Temos uma Comissão Europeia, pela sua composição – sem esquecer que a Presidente Von der Leyen foi reeleita com o apoio dos Verdes – “amiga” do setor agroalimentar?
Recuemos, pela sua importância política, ao discurso sobre o Estado da União, o denominado SOTEU, de 10 de setembro, nos temas mais agrícolas.
Úrsula von der Leyen mencionou a segurança alimentar e o apoio aos agricultores, sublinhando que os agricultores e pescadores europeus são “a chave para nossa segurança alimentar”. Destacou as reformas da Política Agrícola Comum (PAC), com menos burocracia e maior confiança. Anunciou um orçamento de apoio ao rendimento “circunscrito” para os agricultores no âmbito do próximo Quadro Financeiro Plurianual (QFP), com possibilidade de complementos a partir de fundos nacionais e regionais. Prometeu um aumento no orçamento de promoção da UE para lançar uma nova campanha “Compre comida europeia”, sem avançar qualquer detalhe sobre a proposta.
A política comercial foi outro elemento significativo. Von der Leyen enfatizou “salvaguardas robustas” nos acordos comerciais da UE – referindo-se especificamente aos acordos do Mercosul e dos Estados Unidos – para proteger os agricultores da concorrência desleal. Garantiu ainda que a Comissão Europeia está preparada para oferecer compensações, se necessário, e que irá rever a implementação da legislação da UE em matéria de práticas comerciais desleais.
Entretanto, o Executivo de Bruxelas apresentou a sua proposta de orçamento a longo prazo da PAC para 2028-2034, atribuindo 294 mil milhões de euros de financiamento reservado para apoio direto ao rendimento. Este montante é distribuído entre os Estados-membros de acordo com as suas quotas de afetação para 2027, o que significa que a dotação de cada país para o novo período mantém a proporcionalidade histórica e a estabilidade do financiamento. O principal objetivo é preservar a continuidade do apoio à agricultura, permitindo que os agricultores e as partes interessadas planeiem, com confiança, para além do atual quadro orçamental.
No entanto, ajustando a inflação e as alterações técnicas, estima-se que a redução real seja de 15 % quando se compara o apoio ao rendimento da PAC em termos comparáveis, não incluindo os fundos anteriormente destinados a reservas mais amplas para o desenvolvimento rural e de crise.
Recorde-se que os Ministros da Agricultura de toda a UE estão a criticar duramente a proposta da PAC 2028-2034, argumentando que as novas alocações representam cortes significativos para os orçamentos agrícolas nacionais, mesmo que Bruxelas afirme que os 293,7 mil milhões de € são um valor mínimo em vez de um limite máximo.
Em vários Estados-membros, os Ministros estão a manifestar ceticismo quanto à garantia da Comissão de que está disponível mais financiamento através dos planos de parceria nacionais e regionais de 453 mil milhões de euros, receando que esses fundos adicionais possam ser redirecionados para outras prioridades governamentais em vez de objetivos agrícolas.
De resto, Portugal tem sido claro, manifestando-se (e bem) contra a proposta de Bruxelas.
Nas reuniões internacionais em que temos participado, nomeadamente no quadro da presidência da Dinamarca, temos chamado a atenção para a flexibilidade, que não pode ser demasiado excessiva, de forma a evitar a renacionalização da PAC e distorções de concorrência entre Estados-membros, entre agricultores e agriculturas. A solidariedade ainda é (deve ser) um dos pilares essenciais da PAC.
Finalmente, uma última nota, esta bem mais positiva, o adiamento do EUDR – a legislação europeia sobre a desflorestação.
Perante a ausência de respostas concretas de muitos Estados-membros, das pressões dos principais países exportadores – recorde-se que o EUDR e as NGT constam da declaração assinada pela Comissão e pela Administração Trump no acordo tarifário US/UE -, e de organizações relevantes como a FEFAC, COCERAL, FEDIOL ou COPA/COGECA, a Comissária do Ambiente reconheceu que a legislação tem de ser adiada por mais um ano, seguindo agora para discussão no Parlamento Europeu e no Conselho.
Estavam bem presentes os riscos de disrupção nas cadeias de abastecimento de soja, para além dos preços já elevados de matérias-primas como o café ou o cacau. Não foi seguramente indiferente a esta decisão o excelente estudo de impacto que a FEFAC apresentou num Grupo de Diálogo Civil da DG AGRI, em que estiveram presentes as DG ENVI e DG TRADE, onde se conclui que a implementação do EUDR, no modelo adotado pelo Regulamento terá (teria?) um impacto na fileira pecuária de 1,5 biliões de €.
Como sempre referimos, mais burocracia, mais custos, aumento da inflação, tensões desnecessárias. Tudo aquilo de que não necessitamos na conjuntura atual.
Finalmente, duas notas de preocupação: a retaliação da China às importações de carne de porco da União Europeia perante os direitos antidumping em setores como os aditivos, e a eventual proposta de Bruxelas de aplicar sanções a Israel e que não deixarão de ter impacto nas exportações de animais vivos para aquele País, tão relevantes para o setor dos ruminantes em Portugal.
Por outro lado, importa relembrar que a “Estratégia do Prado ao Prato” ainda não foi revista e que a Croplife Portugal, juntamente com a AGROGES, num estudo divulgado muito recentemente, estima uma perda de 510 milhões de € no Rendimento Agrícola Nacional como consequência das políticas europeias.
Com todas estas políticas contraditórias, sendo certo que a Europa não pode continuar a dar “tiros nos pés” e quando, por exemplo, no setor dos cereais caminhamos a passos largos para uma crescente dependência de Países Terceiros (veja-se o milho), temos de perguntar claramente aos decisores políticos, se a segurança alimentar é mesmo uma prioridade da União Europeia.
Jaime Piçarra
Secretário-Geral da IACA