Vinho, vegetais, ervas aromáticas e muita carne são os ingredientes que este ambicioso projeto em Reguengos de Monsaraz consegue criar, transformar e servir aos seus hóspedes. Fomos conhecê-lo
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Parece uma cena de filme. Numa enorme área ao ar livre, ladeada por uma piscina digna de Hollywood, num lado, e por largas centenas de metros de horta, no outro, estica-se uma mesa comprida com bancos corridos. Não faltam pratos, copos, talheres ou pequenos arranjos de flores e ervas silvestres. O sol brilha forte o suficiente para dar nova cor a uma nuca desprotegida e o cheiro a enchidos cozinhados domina o ar.
Estamos no hortelão do São Lourenço do Barrocal, a herdade agrícola de José António Uva que, há poucos anos, tornou-se num dos melhores exemplos de luxo moderno e discreto do país sob a forma de uma espécie de hotel rural que trouxe ainda mais vida a Reguengos de Monsaraz, bem no interior do Alentejo.
“Parece que alguém se vai casar”, comenta uma rapariga entre o grupo que em poucos minutos se sentaria à mesa para um almoço especial. Uma banda vai tocando jazz, pequenos aperitivos e petiscos vão sendo servidos mas só mais tarde, quando é apresentado o novo projeto de agricultura e pecuária desta herdade, é que percebemos a importância daquilo que todos acabam por deglutir com prazer. Vinho, carne, azeite, vegetais, ervas aromáticas… Quase tudo o que é servido foi criado a poucos metros do cenário idílico onde estamos.
Foi na zona da horta que se deu o primeiro almoço no Barrocal, uma das primeiras hipóteses de provar os vários produtos que estão a produzir neste momento. ©Diogo Lopes/Observador
É com uma enorme gargalhada que o mesmo José António Uva recebe, no dia a seguir a essa refeição, a pergunta do Observador: “O São Lourenço do Barrocal é um dos poucos hotéis que se pode comer?” A forma como a ideia é apresentada parece uma brincadeira, mas na realidade este enorme empreendimento ainda não é mas poderá vir a ser, muito em breve, totalmente auto-sustentável. Pelo menos no que a alimentação diz respeito.
Vivemos uma altura em que o fenómeno dos “turismos rurais” explode um pouco por todo o país, com imensas casas ou moradias de ar rústico-chic a brotarem que nem cogumelos. O intenso fluxo turístico que o país tem recebido nos últimos anos parece começar a escorrer para o outros sítios que não as cidades maiores e isso é bom, o interior agradece. Porém, poucos (ou quase nenhuns, mesmo), conseguem distinguir-se e valorizar de modo tão intenso as décadas e décadas de tradição agrícola que noutros tempos fizeram comunidades vibrar, como o São Lourenço do Barrocal parece estar a fazer. Foi com o intuito de perceber melhor como se desenvolveu todo este projeto que o Observador foi conhecer (e provar) in loco aquilo que tem estado a crescer.
Pequeno resumo: com praticamente dois séculos de história, o São Lourenço do Barrocal nunca foi só uma Herdade. Dotado de capela, padaria, campos de cultivo, gado, casas, oficinas, cavalariças, carpintaria e escola, este monte alentejano era mais uma aldeia, um lar para mais de 50 famílias. No ano do 25 de abril, 1974, seguiu o percurso de tantas outras propriedades dos arredores e foi nacionalizada. Chico Zé, como é conhecido o cuidador-mor de tudo o que é cultivo e criação da propriedade, recorda que até mesmo nesse tempo mais conturbado a sua índole comunitária não esmoreceu: “Chegou a haver aqui uma cooperativa, a sede de várias propriedades, nessa altura [período de ocupação no PREC]. Chamava-se Cooperativa D. Nuno Alvares Pereira, era um conjunto de uns seis ou sete mil hectares, várias propriedades ocupadas que tinham aqui a sua sede”, explica, enquanto conduz uma carrinha pick-up. Dirigimo-nos para a área onde 250 cabeças de gado hoje coabitam com turistas e famílias do mundo inteiro. Antes de prosseguirmos por essa estrada enlameada, recuperemos o flashback que dá início a este parágrafo.
José António Uva é o responsável pelo grande renascer desta propriedade que já está na sua família há oito gerações. ©Filipe Lucas Frazão
Passaram-se quase 12 anos de ocupação até que no início dos anos 90 esta zona regressou às mãos de quem a geriu durante sete gerações. Foi precisamente a oitava, José António Uva, que em 2002 decidiu assumi-la e devolver-lhe a vida que parecia ter desaparecido. Mudou-se para a casa do hortelão, uma das únicas estruturas que ainda permanecia intacta, e foi a partir daí que saiu tudo aquilo que hoje se pode encontrar nesta zona já quase à saída de Reguengos de Monsaraz, a uns seis quilómetros de Espanha. Com ajuda de vários registos históricos e com o olhar e traço de Eduardo Souto Moura, restauraou-se tudo aquilo que outrora já ali morou. Não foi adicionado nenhum edifício cujas fundações não existissem, respeitou-se o interior, as cores, os materiais e alma deste espaço de tal forma que entrar numa das suas estruturas ou divisões é quase como fazer uma viagem no tempo — e o mundo deu conta disso, basta assinalar que no passado maio de 2018 Souto Moura venceu o Leão de Ouro da Bienal de Veneza pelo trabalho feito “no Barrocal”.
“A partir do momento em que cheguei, nos primeiros dois anos em que tentei perceber o que tinha aqui existido, dei-me conta rapidamente de que o Barrocal, quando iniciou em 1820, tinha um forte princípio de auto-suficiência. Só compravas coisas fora da Herdade na chamada Feira de Agosto. Era aí que conseguias arranjar o peixe salgado, os tecidos, o sal… Tudo aquilo que não tinhas produzido por ti para o ano inteiro. No resto do tempo subsistias com a casa dos fumados, a padaria, a manteigaria, a queijaria, o forno comunitário de lenha… Tinhas um plano comum, de comunidade”, explica José António umas horas depois do tal passeio da pecuária (já lá voltaremos).
Os estragos causados pelo passar do tempo podem sempre ser recuperados, já os hábitos e estilos de vida nem por isso. “Os tempos mudaram, somos urbanos, temos hipermercados a 15 minutos daqui e a história é diferente [risos]”, continua Uva enquanto beberica um chá feito com ervas que nasceram a poucos metros do sofá onde conversamos. Ora, se já se tinha recuperado tanta coisa do passado, porque não repescar também a tradição agrícola? Desenvolver por oposição, remar contra a maré dos tais “hipermercados a 15 minutos” e valorizar o que a terra dá, sem vergonhas e com dedicação.