A bacia do Tejo é a espinha dorsal do sistema hídrico e de organização do território nacional, diz Pedro Serra que foi responsável pelo sector das águas em Portugal durante décadas. Mas enquanto em todos os outros rios o Estado investiu para os gerir, aqui vinga a convicção que Espanha cumprirá os acordos. Algo inconsistente “à luz até dos princípios da independência nacional.”
Pedro Serra foi presidente do Instituto da Água e da empresa Águas de Portugal, negociou a convenção luso-espanhola sobre os rios internacionais e está no comité de implementação da Convenção da Água das Nações Unidas. Diz que Portugal tem hoje muito mais armas para enfrentar as secas mas continua com uma grande fragilidade: a ausência de uma barragem no Tejo do lado de cá da fronteira faz com que o país apenas consiga gerir o caudal deste rio quando ele já vai a meio do território, em Castelo do Bode. Até aí estamos na mão de Espanha. Mas, garante, há uma convenção que nos protege e que é respeitada. Embora precise de ser aperfeiçoada.
Estamos sob ameaça da seca novamente. Quais são as grandes fragilidades do país?
Não dramatizemos demasiado as fragilidades do país porque comparando com o que aconteceu no passado, hoje estamos muito mais bem preparados para enfrentar as secas do que estávamos há 20 ou 30 anos. Por exemplo: o Alentejo, que era sempre muito severamente afectada pelas secas, hoje, graças ao Alqueva, está mais bem preparado. Mesmo havendo consumos de água relativamente importantes como são os necessários ao regadio de cerca de 80 mil hectares. No Algarve não temos falta de água e já nos esquecemos o que era a falta de água nesta região, que era crónica, há não muitos anos atrás.
Ainda há locais com grandes problemas, como a bacia do Sado.
Ainda tem alguns problemas mas também tem consumos bastante mais importantes do que aqueles que existiam no passado porque o regadio expandiu-se bastante com a chegada da água do Guadiana à bacia do Sado. As albufeiras do Sado que estão interligadas ao Alqueva não têm problemas de falta de água. Aquelas que não estão, têm alguns problemas mas isso é inevitável. Eu recordo-me que nós projectávamos os empreendimentos hidroagrícolas admitindo que em um a cada cinco anos não haveria água para regar. Hoje isso já não é sequer concebível. Nós queremos ter água todos os anos em quantidades muito significativas. Portanto, a forma como olhamos para situações de seca mudou ao longo destes últimos 30 ou 40 anos.
A situação também se agravou, há mais secas.
A situação, do ponto de vista hidro-meteorológico, poderá ter-se agravado com o acentuar de algumas assimetrias, ou seja, temos cheias e secas mais frequentes. Mas do ponto de vista das afluências médias nas nossas principais bacias, não creio que as diferenças sejam muito significativas.
Mas o ministro do Ambiente disse recentemente que, em 20 anos, o caudal do Tejo reduziu 23%. O que se passou?
O Tejo reduziu 23% e o do Guadiana reduziu mais de 50%. Porque há centenas de milhares de hectares que estão a ser regados tanto na bacia do Tejo como na bacia do Guadiana. Há de facto uma redução das afluências mas ela decorre em larga medida do facto de haver uma utilização muito intensa do regadio.
Considera que o país necessita de mais barragens?
A situação é diversa de bacia para bacia. A Norte do Tejo, temos o aprovisionamento de água necessário para os principais usos.
Mas ainda está previsto o empreendimento do Fridão, que conta com muita oposição.
Sim, têm razões de natureza ambiental e social. Há algum receio por parte da população de Amarante em ter uma barragem com alguma dimensão pouco a montante da cidade em que qualquer problema que possa ocorrer teria graves consequências.
É uma obra essencial?
Não gosto de me pronunciar sobre aquilo que não sei. Percebo o racional dos habitantes de Amarante e as suas preocupações. Não posso deixar de dizer que lamento que estas questões não sejam discutidas e decididas em tempo útil. Recordo-me do que aconteceu com Foz Côa. As gravuras lá estão, que ninguém visita. A forma como o assunto foi conduzido custou ao Estado português cerca de 100 milhões de euros.
A alternativa, que foi o Sabor, era pior?
Os impactos do Sabor comparados com Foz Côa foram seguramente mais severos do ponto de vista ambiental. O Côa já era uma paisagem muito humanizada enquanto o Baixo Sabor estava ainda em estado praticamente selvagem. Não obstante, era muito importante construir à entrada de Portugal um aproveitamento com capacidade de armazenamento expressiva, que nos colocasse ao abrigo de qualquer problema proveniente dos usos dados à água do Douro em Espanha. O mesmo fizemos no Guadiana com a construção do Alqueva e o mesmo deve ser feito no Tejo porque, nesta bacia, o primeiro aproveitamento que temos com alguma dimensão e capacidade de regularização é Castelo de Bode no Zêzere e este conflui com o Tejo já a meio do seu percurso em território nacional.
É então fundamental uma barragem a montante?
Devia ser retomado um projecto que borregou há uns anos que é a construção da barragem do Alvito, no rio Ocreza, para nos garantir alguma autarcia no que concerne à gestão dos nossos recursos hídricos, para não ficarmos completamente dependentes daquilo que os nossos vizinhos fazem em cada uma das bacias que partilhamos com eles.
Portanto, estando o Norte resolvido, considera que a Sul é só o Alvito que faz falta?
Há outros aproveitamentos que têm sido ventilados, como o Pisão. Mas esses são aproveitamentos com interesse local enquanto o Alvito é um aproveitamento com interesse regional, para não dizer nacional.
Que interesse regional?
A bacia do Tejo é o filet mignon da agricultura portuguesa e nós deixamos nos ombros dos agricultores toda a responsabilidade pela promoção do regadio nesta bacia. Estamos a falar de cerca de 80 mil hectares, é praticamente tanto quanto a EDIA fez no Alentejo até ao momento. E com possibilidade de expansão. É uma das áreas de regadio mais importantes que temos, com um impacto muito importante nas exportações e no equilíbrio da nossa balança comercial. Noutras bacias, o Estado interveio e realizou investimentos, o Tejo tem estado sob única responsabilidade dos agricultores.
O que deve ser feito?
Pelo menos construir a barragem do Alvito, apoiar a organização dos agricultores. Um Alvito com fins múltiplos podia também contemplar a produção de energia hidro-eléctrica, abastecimento de água às populações, a regulação de caudais para a rega durante a estiagem, etc, etc. Não seria sequer um investimento muito vultuoso, tem estado nos planos há muitos anos, sempre adiado. E é muito importante porque a bacia do Tejo é a espinha dorsal do sistema hídrico e de organização do território nacional.
O Tejo está cheio de problemas que vêm de Espanha, desde a poluição à transferência de água para as regiões do Sul.
Continua a haver transvases mas os volumes são bastante diminutos. Estamos a falar de valores na ordem dos 3% das afluências do Tejo em Espanha. Se somarmos a isso as utilizações em regadio, de facto temos de facto uma redução substantiva dos volumes de água que nos chegam de Espanha. Há também uma regularização muito intensa porque entre Valdecañas, Gabriel y Galan e Alcântara, estamos a falar de cerca 5 a 6 mil milhões de metros cúbicos de capacidade de armazenamento, o que é muito. Felizmente para nós que as utilizações primárias desses aproveitamentos são hidroagrícolas, portanto produzem alguma regularização de caudais, da qual nós também beneficiamos, basta notar que deixámos praticamente de ter inundações no Tejo, o que é bom e é mau. É bom porque defende as populações, é mau porque os rios também precisam de ter inundações de vez em quando para preservação dos habitats.
Tem-se criticado a convenção por não estarem previstos caudais diários à entrada em Portugal. Tem de se mudar a convenção?
Talvez devêssemos ter [obrigações sobre] os caudais diários no Tejo e deveríamos ter um pouco mais de água durante o período da estiagem. São assuntos que têm de ser discutidos com as autoridades espanholas. Sendo que já temos uma situação que nos é bastante mais favorável do que era antes da convenção porque, com a intensificação dos usos, sem ela hoje estaríamos pior do que estamos. Basta olhar para o plano de gestão de secas elaborado pelas autoridades espanholas em que os procedimentos e os valores da convenção condicionam fortemente a exploração dos empreendimentos mais importantes, como Alcântara, que fica a dezenas de quilómetros da fronteira portuguesa. Esta barragem tem a sua exploração hidro-eléctrica fortemente condicionada para garantir que os caudais que estão convencionados para o período de estiagem são respeitados e chegam a Portugal. Gosto de recordar que em 1944-45, durante dois meses e meio não correu uma gota de água no Tejo. E não havia barragens, nem transvases, nem coisa nenhuma. A natureza foi madrasta. Não correu uma gota de água no Sado e vivemos uma seca regional muito severa. Hoje, em condições hidroclimatológicas semelhantes, que já as tivemos, isso não aconteceu graças aos investimentos que foram feitos, a alguma regularização que foi conseguida. Isto apesar dos consumos intensivos da agricultura. Convém sempre olhar para as duas faces da moeda. Nós temos problemas, que podem ser resolvidos melhorando os acordos com Espanha, mas também temos de fazer a nossa parte. E por isso não posso deixar de voltar ao tema do Alvito.
A ministra espanhola já disse a Portugal “façam as vossas barragens”.
Nós temos de fazer a nossa parte. Estarmos à espera que os espanhóis façam tudo por nós não tem qualquer consistência à luz até dos princípios da independência nacional.
A situação portuguesa, não entanto, é melhor que a espanhola.
Muito melhor. Nós temos muito mais água do que Espanha. O dobro. Temos cerca de seis mil m3 por habitante por ano, os espanhóis têm cerca de 3,5 mil m3. É claro que para os nossos seis mil há afluências importantes provenientes de Espanha.
Voltando ao Tejo, há ainda o problema da poluição vinda de Espanha.
Continuamos a ter poluição em rios nacionais e internacionais. O problema do Tejo é complexo. O problema começa ainda em Madrid. O Estado espanhol já foi multado pela Comissão Europeia por incumprimento das normas da Directiva da Água por causa dos esgotos urbanos. O mesmo aconteceu com Portugal – andámos a assobiar para o ar com a ETAR de Matosinhos e só depois de termos pago 24 milhões de euros de multa é que finalmente fizemos a ETAR, que nos custou a terça parte da multa. O Estado foi tolerante com o incumprimento por parte da câmara de Matosinhos. Em Espanha acontece uma situação semelhante, mais complexa talvez de resolução porque eles não têm uma Águas de Espanha como nós temos a Águas de Portugal. É cada município per si que tenta resolver, sendo que os municípios espanhóis são mais pequenos que os portugueses e portanto há uma situação muito difícil que agora está a ser ultrapassada graças a investimentos muito importantes que estão a ser feitos, que esperamos vir a resolver alguns problemas.