
O Governo português aprovou um Roteiro para a Neutralidade Carbónica que prevê que até 2050 Portugal consiga “limpar” a sua pegada de carbono. O documento, que está longe de ser consensual na sociedade portuguesa, sobretudo entre alguns agentes económicos, será apresentado em Nova Iorque pelo ministro do Ambiente, João Matos Fernandes, no âmbito da cimeira do clima organizada pelas Nações Unidas. Mas esse compromisso de neutralidade carbónica é exequível?
O roteiro mereceu uma consulta pública que em três meses atraiu 80 contributos, contando ainda com apresentações em Lisboa, Coimbra, Porto, Évora, Faro e Funchal. O que prevê o documento, aprovado em Conselho de Ministros a 6 de junho deste ano, e publicado em “Diário da República” um mês depois, é que Portugal seja capaz de até 2050 reduzir em 90% as suas emissões de gases com efeito de estufa (face aos níveis de 2005), sendo os restantes 10% capturados por sumidouros naturais (o solo e a floresta).
Para lá chegar os especialistas que contribuíram para este roteiro (uma equipa de mais de duas dezenas de pessoas que trabalham na área do clima, entre investigadores e professores universitários, consultores e outros) desenharam um conjunto de estratégias e abordagens em áreas que vão desde a produção de eletricidade aos transportes, passando pela eficiência energética, agricultura sustentável e captura de carbono.
E que trajetórias em concreto prevê o plano? O que é preciso para lá chegar? Quanto custaria simplesmente pagar por essas emissões em vez de evitá-las?
O tema das alterações climáticas, que vem gerando manifestações pelo mundo fora, tem envolvido os mais altos responsáveis e o próprio Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, enfatizou recentemente o exemplo português.
1. Que emissões tem afinal Portugal?
Na última década, entre 2007 e 2017, o nosso país emitiu uma média anual de 69 milhões de toneladas de dióxido de carbono (CO2). Desse volume, 25% veio do sector energético, 25% dos transportes, 23% da indústria, 10% da agricultura, 8% de outros usos de energia e 7% dos resíduos. A forma como consumimos energia influencia as emissões. Em 2015, dos 53 milhões de toneladas de CO2 emitidos nesse ano, a produção de eletricidade contribuiu com 16 milhões de toneladas, os transportes com 16,2 milhões e a indústria com 12,7 milhões. A refinação petrolífera pesou somente 2,4 milhões de toneladas, pouco mais que as emissões diretamente ligadas à habitação (2,1 milhões de toneladas).
2. Seria viável pagar pelas emissões em vez de as eliminar?
O mercado de licenças de emissão de CO2 está longe de ser global, da mesma forma que não há unanimidade entre os países de todo o planeta na gestão das alterações climáticas. Na Europa várias atividades económicas estão obrigadas a pagar pelas suas emissões, entre as quais a produção de eletricidade. O mercado europeu de licenças de emissão está a transacionar a tonelada de carbono a cerca de 25 euros. O que significaria que, num mero exercício teórico, para Portugal pagar pelo direito a emitir, em vez de cortar nessas emissões, os 69 milhões anuais de toneladas de CO2 custariam ao país 1,7 mil milhões de euros por ano em licenças. E não deixaríamos de poluir.
3. Quais serão as áreas de ataque do plano português?
Na produção de eletricidade, o Governo defende 100% de energias renováveis em 2050. Um objetivo intercalar, vertido no Plano Nacional de Energia e Clima (PNEC), passa por ter 80% de renováveis na produção elétrica em 2030 (vindo os restantes 20% de centrais alimentadas a gás natural, e encerrando, até 2030, as centrais a carvão). Nos transportes prevê-se que em 2050 as renováveis assegurem 90% da mobilidade (com um objetivo intercalar de 35% em 2030), o que deverá ser conseguido com maior aposta nos transportes públicos (sobretudo ferrovia e metropolitano), mas também mais carros elétricos e outras tecnologias ainda em desenvolvimento, como os carros a hidrogénio. Na indústria aponta-se uma redução das emissões de 73% até 2050, sobretudo por via da eletrificação de parte dos seus consumos energéticos. O plano prevê ainda uma total descarbonização do setor residencial e de serviços até 2050, uma redução de 82% das emissões com origem em aterros. Outra estratégia, porque as reduções de emissões não serão totais, será reforçar a área florestal, de forma a aumentar a capacidade de sumidouros naturais do país.
4. É um plano exequível?
No final do ano passado, ao apresentar publicamente o Roteiro para a Neutralidade Carbónica, o ministro do Ambiente deixou clara a ambição do plano. “A vida dos portugueses será seguramente diferente da que é hoje”, afirmou João Matos Fernandes, acrescentando que esta primeira década (de 2020 a 2030) será “a mais exigente”. Uma das bases do plano, o sector elétrico, parece apresentar as condições de exequibilidade: Portugal já demonstrou que consegue viver períodos prolongados de tempo sem centrais a carvão. E o reforço da capacidade de energia solar na próxima década alimentará boa parte do incremento na produção renovável. Os mais críticos duvidam da capacidade de o sistema elétrico funcionar a 100% com renováveis, dada a sua intermitência. De facto, o vento tem alguma intermitência, o sol apenas gera eletricidade de dia e as barragens oscilam entre anos secos e húmidos. Mas são fontes que se complementam e que poderão, tirando partido da capacidade de armazenagem hidroelétrica, dar razoáveis garantias de segurança no sistema de produção de eletricidade.
Por outro lado, nos transportes também já foi apontada ao Governo uma ambição excessiva na descarbonização, quer porque a aposta na ferrovia não está ainda otimizada, quer porque os números projetados para a mobilidade elétrica são relativamente elevados, ou porque se conta com soluções ainda por provar, como a dos carros a hidrogénio. Na indústria, a eletrificação de consumos de energia, de forma a reduzir as suas emissões, pode também gerar dúvidas sobre se é uma medida exequível nos planos técnico e económico.
5. Somos mais papistas que o Papa?
Portugal não é o único país a comprometer-se com a neutralidade carbónica até 2050. O Reino Unido também defende esta meta, bem como países como Alemanha, Grécia, Itália e Eslovénia. O desafio da cimeira que arranca na próxima segunda-feira em Nova Iorque é ampliar o grau de compromisso internacional de longo prazo. Mas este sábado, em declarações à agência Lusa, o ministro do Ambiente, já reconheceu a dificuldade. “Não esperamos unanimidade, essa unanimidade não existe na União Europeia”, afirmou o governante. “É absolutamente claro desde o ano passado que, para que os 1,5 graus (de aumento global da temperatura) não sejam ultrapassados no final do século, que o mundo seja neutro em 2050”, alertou Matos Fernandes.