Ao longo dos últimos meses, o comportamento dos preços dos produtos alimentares ganhou espaço na comunicação social. Por um lado, porque o ritmo do seu crescimento foi muito acentuado, com impacto evidente nos níveis de inflação suportados pelas famílias portuguesas e, por outro lado, devido à resiliência desta tendência quando os preços de muitos dos outros bens e serviços da economia já começaram a dar sinais de abrandar o ritmo da sua subida. Muito se escreveu e disse sobre o assunto, criando-se mesmo a ideia de que os agricultores portugueses poderiam contribuir para que tal processo inflacionista abrandasse e se invertesse. Nada mais errado.
Sobre o aumento dos custos de produção na agricultura
As razões que estão na génese do aumento dos custos de produção dos produtos agrícolas (maioritariamente destinados à alimentação) são diversas e nem sempre se compadecem com explicações simplistas, dada a inter-relação que existe entre elas. No entanto, na base do processo inflacionista dos custos de produção dos produtos agrícolas estão quatro “acontecimentos” que marcam de forma decisiva os tempos que vivemos:
- em primeiro lugar, a pandemia de Covid-19 que impactou de forma significativa, e à escala global, em muitas cadeias de aprovisionamento, tornando os serviços de logística e transporte muito mais dispendiosos, com um reflexo imediato nos custos de produção de todos os produtos mais exigentes nesses serviços;
- em segundo lugar, o aumento dos custos da energia, que começou a desenhar-se a partir do Verão de 2021 (também uma consequência próxima da pandemia), arrastando consigo uma tendência de aumento nos diversos recursos intensivos em energia, como por exemplo os fertilizantes e outros agroquímicos, mas também a água para rega, recurso cada vez mais intensivo em energia;
- em terceiro lugar, a eclosão da invasão da Ucrânia pela Rússia no início de 2022 e a manutenção do estado de guerra na Europa, situação que, para além dos horrores humanos que continua a provocar, teve um impacto direto quer no mercado da energia (dada a dependência da Europa do gás e petróleo russos) quer nos mercados de alguns produtos agrícolas, nomeadamente dos cereais e algumas oleaginosas e proteaginosas importadas dos países mais diretamente envolvidos no conflito.
- em quarto lugar, e com um impacto particular no nosso país, uma prolongada situação de seca que originou quebras no fornecimento de alguns produtos e consequente aumento de custos com a sua aquisição (nomeadamente dos alimentos para o gado) bem como uma crise aguda em muitas das empresas agrícolas mais afetadas por este fenómeno.
Com o passar do tempo, a pandemia foi ultrapassada e as cadeias de distribuição e aprovisionamento foram restabelecidas (custos do frete caíram mais de 80% ao longo de 2022). Também nos mercados da energia se vem verificando um ajustamento dos preços, numa tendência de redução desde o final do Verão de 2022. Finalmente, as exportações de cereais e fertilizantes a partir dos países em guerra têm sido objeto de acordos internacionais, contribuindo para mitigar o impacto no processo de inflação dos custos de produção na agricultura. Manteve-se a situação de seca, apesar do Outono chuvoso, assunto que daria seguramente matéria para um outro texto.
Sobre o que atrás ficou escrito, é importante reter dois pontos:
- em primeiro lugar, e para o que nos interessa no âmbito deste texto, realça-se que os “grandes acontecimentos” mais ou menos globais acima mencionados, tiveram impacto essencialmente nos custos de produção dos produtos agrícolas, o que é diferente de determinarem imediatamente um aumento dos preços de venda destes mesmos produtos;
- em segundo lugar, note-se que, a par das tendências macro acima referidas, todos os restantes drivers importantes para a formação dos preços dos produtos agrícolas em cada geografia se mantiveram ativos – oscilações importantes na procura local de diversos produtos (fruto do ajustamento dos padrões alimentares durante a pandemia, por exemplo), fenómenos meteorológicos anormais em diversas geografias importantes (entre secas e inundações, decorrentes de forma mais ou menos direta do processo de alterações climáticas), crescimento da população mundial e melhoria dos padrões de consumo (o que vai pressionando, de forma continuada, a procura da generalidade dos alimentos), intervenções de políticas públicas mais ou menos musculadas com impacto no rendimento dos agricultores (intervenções quase sempre desviando o seu objetivo da necessidade de produzir para a necessidade de preservar recursos naturais) e, last but not the least, os agricultores de todo o mundo continuaram a ter que viver à custa de sua atividade económica, e os agricultores portugueses não foram exceção.
Porque gente bem mais sábia e habilitada já tem vindo a escrever sobre as grandes tendências que estão na base da inflação dos produtos alimentares, gostaria de me centrar no papel dos agricultores, em particular daqueles que desenvolvem a sua atividade em solo português, e das suas “culpas” no processo inflacionista dos produtos alimentares no nosso país. E fá-lo-ei retendo desde já o facto de, desde o início de 2020 até aos dias de hoje, os agricultores terem registado um enorme aumento nos custos de produção que, para muitos produtos, chegaram a mais do que duplicar.
Sobre o princípio do fim da alimentação segura e barata à mesa do consumidor
Começo esta análise com um breve parêntesis. De facto, nestes períodos em que a alimentação fica mais cara, é sempre útil recordar que os cidadãos europeus têm tido acesso a produtos alimentares caraterizados por elevadíssimos padrões de qualidade (sem paralelo à escala mundial), produzidos segundo as mais exigentes normas ambientais e de respeito pelos direitos humanos, e a um preço reduzido nas prateleiras dos supermercados. Esta espécie de “milagre” apenas é possível devido à existência de um conjunto de políticas públicas, quase todas elas integradas na Política Agrícola Comum (PAC), que:
- apoiam diretamente o rendimento dos agricultores permitindo que eles vendam mais baratos os produtos que produzem, e
- subsidiam os custos adicionais com a adoção de diversas práticas focadas nas dimensões ambientais e de clima, evitando que esses custos se repercutam no preço final dos produtos.
Este caminho, percorrido de reforma da PAC em reforma da PAC, tem sofrido diversos ajustamentos, sendo evidente o aumento da importância dos objetivos ambientais e de clima em detrimento dos objetivos de apoio ao rendimento e de fomento da competitividade. Compreende-se que assim seja, tendo em conta a importância que a Sociedade vem dando a estas dimensões. Mas tenhamos todos a consciência de que a redução dos apoios diretos ao rendimento dos agricultores (como se tem verificado de facto) e a quebra de competitividade que decorre da secundarização dos objetivos de produção de alimentos, tem inevitáveis impactos na realidade que temos vivido: os consumidores europeus têm que se habituar a uma alimentação mais cara para que se mantenham os exigentes padrões de qualidade, de proteção do ambiente, de combate à crise climática e de respeito inequívoco pelos direitos humanos. Uma parte do aumento de preços dos produtos agrícolas, pequena certamente, é já um reflexo destas opções. O problema é que os políticos que vêm desenhando e implementando estas políticas não perdem um minuto a explicar, de forma clara, este tipo de consequências aos consumidores.
Sobre a capacidade dos agricultores decidirem sobre os preços de venda
Fechado o parêntesis, e retomando a linha deste texto, desengane-se quem pense (ou quem o afirme, sem pensar) que os agricultores decidiram vender os seus produtos mais caros porque tiveram um conjunto de rubricas de custo que aumentaram muito nestes últimos 3 anos. Por natureza, os agricultores são típicos “price-takers” (em linguagem mais liberal) ou “entidades económicas dominadas” (num léxico mais dialético). Ou seja, pela sua pulverização e falta de escala que lhes retira capacidade negocial, e pela indiferenciação que carateriza grande parte dos seus produtos, aceitam o preço que os seus clientes (essencialmente indústrias transformadoras e distribuidores) lhes propõem. Aqui e ali, através de alguma diferenciação dos produtos e de estruturas que agregam a sua produção, dão um ar da sua graça, entrando em processos negociais que todo sabemos de que forma terminam. Não digo isto como uma crítica, nem às organizações da produção agrícola, nem às indústrias ou às cadeias da grande distribuição. Digo-o por ser exatamente assim, com as honrosas e devidas exceções que sempre existem.
Assim, é um pouco desconcertante ouvir o Governo achar (ou dizer, sem o achar) que negociou com os agricultores (com as suas Associações) o seu “contributo para a estabilização e redução dos preços dos produtos agrícolas”. Entendamo-nos: se um agricultor puder vender uma tonelada de tomate por 120 € em vez de a vender por 100 €, porque a indústria lhe oferece tal preço, fá-lo-á. E muito estranho seria se assim não fosse. Era sinal que estávamos a pedir ao elo da cadeia que é tradicionalmente esmagado nos processos de formação de preço, que se autoinfligisse este esmagamento adicional.
Sim, é verdade que a generalidade dos preços dos produtos agrícolas pagos aos agricultores aumentou de forma significativa nestes três anos. Sim, é verdade que, em algumas dessas situações (e não em todas) estes aumentos foram mais do que proporcionais relativamente ao aumento dos custos de produção que suportaram, permitindo-lhes realizar melhores resultados do que em anos “normais”, e bastante melhores resultados do que em anos “maus”. Mas este facto não significa que a decisão do aumento dos preços seja dos agricultores, assim como não é sua a decisão de vender barato os seus produtos nos anos em que tal acontece. Se, uma vez por outra, a conjugação de um conjunto de fatores origina melhores negócios na agricultura do que é costume, foi porque os clientes (indústria e distribuição) ofereceram preços mais elevados à produção. E porque o terão feito? Só eles o poderão dizer, mas calculo que tal tenha acontecido muito mais pelo receio de escassez de muitos desses produtos no mercado (escassez essa que foi efetiva nos mercados internacionais em diversos produtos), do que por qualquer outra razão.
Sobre o modelo da teia-de-aranha e as escolhas dos agricultores
Quem estudou um pouco de economia, terá certamente presente um dos modelos mais utilizados na explicação do comportamento dos mercados de produtos agrícolas. Esse comportamento decorre essencialmente de duas caraterísticas dos processos produtivos em causa: (1) a sua sazonalidade e (2) o alargado intervalo de tempo entre a tomada de decisão sobre o que produzir e o momento de colocação do produto no mercado.
Este modelo, conhecido por “modelo da teia-de-aranha” (não explorarei aqui, por irrelevante para este texto, o seu comportamento convergente e/ou divergente), baseia-se na constatação simples de que quando um agricultor decide que cultura instalar (que produto produzir), fá-lo também (embora não apenas) com base nos níveis de preços que, nesse momento, se verificam no mercado – o preço da campanha anterior e não aquele que irá verificar-se cinco ou seis meses mais tarde (ou às vezes mais) quando o agricultor colocar o seu produto no mercado.
Quando assim é, e sempre que existe uma inversão de tendência de preços de um ano para o seguinte (o que ocorre com alguma frequência), as escolhas dos agricultores tendem a “sair erradas”, dado o contraciclo que define o seu processo de decisão: se este ano o preço da batata esteve alto, para o ano haverá mais agricultores a produzir batata. Em mercados menos globalizados, este facto tenderá a provocar um excedente de oferta momentâneo, promovendo a redução do preço. É claro que este comportamento não se observa em cultura permanentes, como os pomares, os olivais ou as vinhas. É também claro que a globalização dos mercados tende a atenuar um pouco este tipo de consequência. Mas ainda é muito com base neste raciocínio que são feitas algumas opções de produção.
Acresce que os produtos agrícolas são geralmente perecíveis, e que a capacidade de transformação/conservação nas explorações ou nos agrupamentos de produtores é muito limitada. Ou seja, o diminuto controlo que existe sobre a quantidade de produto que, em cada momento, os agricultores colocam no mercado, apenas marginalmente poderá influenciar a definição do preço pelo qual o seu produto é vendido.
Em conclusão
Admitindo que a leitura que faço está próxima da realidade portuguesa, a questão que se coloca é se competiria aos agricultores recusarem receber preços “mais elevados” pelos seus produtos, por forma a promoverem uma mais rápida redução da inflação nos alimentos. Pelo que já deixei escrito, é evidente que acho que não. E os agricultores não têm de se envergonhar quando conseguem fazer bons negócios, mesmo que pouco consigam influenciar os preços de venda daquilo que produzem.
A César o que é de César: é ao Governo que compete promover políticas públicas que sejam eficazes para controlar a inflação. É ao Governo que compete decidir se apoia ou não os rendimentos das famílias mais carenciadas, e de que forma o faz. Acenar publicamente, com pompa e circunstância, com uns milhões de euros que serão canalizados para os agricultores, criando a falsa perceção na opinião pública de que, com isso, se estabilizam os preços dos alimentos é pura demagogia.
Já agora, e a talhe de foice, é também ao Governo que compete decidir de forma clara o que pretende em matéria de política agrícola (e alimentar) e qual a atenção e nível de competência política que quer dedicar a este setor. Como tentei deixar claro, aquilo que foi um pico de inflação associado a fenómenos críticos bem identificados, caminha a passos largos para se tornar uma constante: a alimentação segura (do ponto de vista nutricional, ambiental, territorial e social) passará a chegar muito mais cara à mesa dos europeus. Manter qualidade e segurança, respondendo aos níveis crescentes de exigências que a política europeia vem impondo, apenas é possível com uma forte política de apoio ao rendimento dos agricultores e com a compensação efetiva dos custos acrescidos impostos por essas mesmas exigências. É isso ou assumir uma escalada efetiva e estrutural dos preços dos alimentos. Ou, em alternativa pouco inteligente, empurrar para a falência a agricultura europeia e abrir portas aos produtos alimentares produzidos noutras geografias, com os padrões de qualidade que todos conhecemos.
Francisco Gomes da Silva
DIRECTOR GERAL AGRO.GES
Professor no Instituto Superior de Agronomia
fgsilva@agroges.pt
O artigo foi publicado originalmente em AGRO.GES.