[Fonte: Público]
O que leva a que tenha vindo a consolidar-se a ideia da desnecessidade do ministério que agora chega ao centenário?
Não nos damos conta, mas a política agrícola e alimentar é aquela que nos acompanha ao longo de toda a nossa vida. Também a política ambiental, mas já em segundo nível. Todas as restantes, da saúde à educação, aparecem em tempos espaçados, em momentos específicos.
O Ministério da Agricultura é, por isso, o ministério do subconsciente, aquele que está lá mas de quem não nos socorremos por ser automático, ubíquo, inquestionável.
Mas se assim é, o que leva a que tenha vindo a consolidar-se a ideia da desnecessidade do ministério que agora chega ao centenário? A resposta não é simples, tem muitas componentes, exigiria muito mais do que um texto de comemoração. Há, contudo, algumas razões que devem ser aqui expedidas.
O tempo que vivemos avoca uma dualidade, que parece quase irremediável, entre ruralidade e cosmopolitismo. Esta circunstância tem marginalizado, em termos públicos, o campo de debate dos assuntos agrícolas e dos temas da alimentação no início da cadeia de valor. Por outro lado, as questões que são assumidas pelo espaço rural, na sua relação com tradições ancestrais e com vivências especiais, em especial com o mundo animal, levam a que as mais recentes agendas se afirmem desgraduadoras de um departamento de Estado que deve pugnar pelo equilíbrio entre os modos de vida tradicionais e os incrementos societais. As questões da caça, da pesca em águas interiores, da produção equina, da festa brava, das formas regionais de “matança”, são exemplos do que referimos.
Está claro que a desconsideração pelo espaço político da agricultura também advém da forma como temos gerido, enquanto país, as opções estratégicas do setor. Há que assumir, porque neste tempo de olhar para o futuro não importa fechar portas nem deixar de afrontar o passado, que o Ministério da Agricultura se transformou numa espécie de tesouraria dos fundos europeus, quase desconhecendo as novas modalidades do fazer política, do afirmar das organizações e do marketing institucional.
Quando reparamos na presença do Ministério da Agricultura ela está sempre na identificação de valores monetários, na reivindicação de subsídios e comparticipações. Ora, sendo verdade que os setores agrícola e florestal assumem contingências que não existem em mais nenhum outro universo económico, não é menos verdade que esta liturgia é nefasta para a emancipação dos empresários, para a assunção das responsabilidades dos proprietários da terra e, ainda, para as entidades locais com responsabilidade no território.
Em todos os domínios políticos com dimensão territorial se verificaram processos de descentralização significativos. Iremos constatar novos impulsos no próximo futuro. Porém, mesmo depois das boas e estratégicas medidas de racionalização do ministério de 1997 e 2006, essas inovações estruturais nunca atravessaram, de forma expressiva, o setor agrícola. A questão que se coloca é sobre as razões para que tal tenha acontecido. E nós identificamos bem essas razões. As primeiras são de propriedade partidária. Os partidos centrais deixaram de fazer políticos no setor, deixaram de inovar e de reivindicar o benchmarking, deixaram de ir captar quadros a outros universos empresariais, deixaram de se relacionar com a universidade incorporando conhecimento transversal e implicando as opções de outros territórios técnicos. As segundas são de sectarismo temático que levam a que o paradigma do “agricultês” vá eliminando a ciência económica.
Perante todos estes factos, há também duas formas de fazermos o caminho. A primeira é fechar os olhos. Assim, voltamos sempre à casa de partida, ao certo que foi mas ao errado que será. A segunda é a promoção de uma transformação de métodos e de estatuto que não se fique pela usança.
Desde a nossa pré-adesão até hoje, com muitos milhares de milhão de euros entrados e transferidos para o setor, que deveríamos ter concretizado uma análise completa do caminho que seguimos, dos sucessos e dos insucessos. Está claro que esta economia se transformou em parte; está claro que se verificou uma transfiguração radical das práticas e da incorporação tecnológica; está claro que temos, por esta altura, nichos de ponta e realidades de sucesso. Mas é também claro que não há outro setor onde a mortalidade dos projetos seja tão alta, em que a avaliação do investimento seja tão desordenada e até inexistente, em que se constata passado e presente mas não se adivinha futuro estruturado e de médio prazo. Temos, pois, um navegar ao instante, mas não temos uma estratégia que nos deixe descansados. Um reparar nas opções smart das políticas púbicas leva-nos a preocupações ainda maiores no universo agrícola.
O acontecimento que foi o Alqueva, implicante de outras políticas e outras obrigações, não comporta uma leitura sobre o custo da sua gestão, não nos diz do impacto que vai ter no momento em que se considerar obrigatório o investimento de manutenção e de garantia de exploração eficiente. O mesmo princípio, do custo-benefício, que se deve indicar aos restantes projetos de regadio, não se nos afigura, por agora, certificado.
Por outro lado, nós não temos ainda um quadro estratégico para a produção animal; nós não temos um pensar global para a política florestal; nós não temos uma leitura conhecida de sanidade; nós não temos um quadro plurianual de investigação e de parceria. Poderão dizer-nos que há ideias, projetos, momentos. Sim, não o negamos, mas o país não é a cabeça de uma só pessoa, não é a centralização numa visão, por mais lúcida que possa ser. O país é um contínuo, é uma linha que deve garantir sequência. É por isso que sempre nos manifestamos contra o incrementalismo acrítico que o Ministério da Agricultura foi tendo com raras mas relevantes exceções.
Outro dos campos de política em que o Ministério da Agricultura se tem mostrado débil é o do conhecimento das cadeias de valor. O agroalimentar é muito estimado pelas estruturas da Economia e encontra uma dificuldade teológica permanente na relação com a Agricultura. Há uma linha intransponível na conexão – a visão burocrática do investimento, a lenta opção pelos ciclos da natureza que não são os ciclos do investimento industrial. O mesmo se pode encontrar no setor pecuário, onde Portugal pode acordar e dar cartas, mas que tarda em encontrar novas formas de se afirmar, organizar, crescer e diversificar-se.
Quando olhamos o setor florestal, que tem um peso nas exportações muito significativo, encontramos uma permanente desconsideração nas opções centrais. Não se trata de descobrir respostas momentâneas (mesmo que importantes e corretas) para afrontar os incêndios, trata-se, tão só, de encetar formas de interprofissionalismo, de partilha e de determinação de objetivos que, embora enunciados, não saem do papel por medo de agir.
Estamos a chegar a um momento em que se vai negociar um novo pacote financeiro para a agricultura. Esta negociação será feita na última época de um tempo europeu. Quando chegar o final da próxima década não haverá mais esta PAC com tantos recursos financeiros, porque a União Europeia vai, obrigatoriamente, redefinir as suas obrigações ou porque, para mal nosso, terá deixado de existir entretanto.
O processo que estamos a preludiar, para o qual encontramos um consenso mínimo entre partidos que leva a que o montante destinado a Portugal seja semelhante ao do último período de fundos, vai ser determinado, relativamente à comparticipação nacional do primeiro pilar e, ainda, à distribuição entre pilares e eixos nacionais, pela realidade que queremos vir a construir. Olhamos a oposição parlamentar e gostaríamos que o Governo encontrasse com ela mais opções para se reequilibrar territorialmente o setor na perspetiva das próximas ajudas comunitárias.
Até agora mais não vimos do que o indicar de um valor, mais não constatamos que um temor, errado de dizer, de que possamos vir a ter uma redução de 15% dos fundos (o que nunca aconteceria). O país deveria saber onde quer investir o que a UE nos vai entregar, se quer reiniciar uma alteração significativa do seu paradigma agrícola e florestal, seguindo as linhas estratégicas do PRODER, ou se quer fazer mais do mesmo. Não nos basta a existência de uma comissão de sábios que é a mesma de sempre; não nos chega saber que os mais prestigiados técnicos serão ouvidos porque serão sempre os mesmos; o que nos interessava era que o país, todo o país, estivesse a partilhar o futuro da agricultura e que deixássemos de ter um sentimento de desconsideração que já identificamos no início deste texto.
Tendo trabalhado com o primeiro-ministro António Costa, conhecendo a sua permanente insatisfação perante realidades insuficientes, talvez possamos adivinhar que ele gostasse de uma outra velocidade, que o país tivesse, também aqui, outro olhar sobre o futuro. Sabemos que o atual ministro tem, também, um desejo – o de consolidar e perenizar a sua marca para o futuro. Que todos possamos dar-lhes a energia para que se vença a letargia do sistema e se lhe dê caminho.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico
O artigo No centenário do Ministério da Agricultura foi publicado originalmente em Público