Portugal é deficitário em carne de bovino e de suíno, e, simultaneamente, a maioria dos solos agrícolas é pobre em matéria orgânica e, por conseguinte, dotada de baixa fertilidade; mas, para se elevar a produção de carne terão de se produzir mais efluentes pecuários, que poderiam elevar a produtividade dos solos. Porém, para minimizar o possível risco de contaminação das massas de água, a nossa legislação condiciona e burocratiza fortemente a valorização agrícola dos efluentes pecuários.
Todavia, com excepção das zonas vulneráveis, os adubos minerais e os correctivos orgânicos importados podem ser aplicados sem restrições legais. Ou seja, a produção animal nacional é discriminada negativamente, em consequência de uma política que, inclusivé, vai ao arrepio das orientações emanadas de Bruxelas, no sentido de substituir os adubos minerais, na medida do possível, por fertilizantes orgânicos.
De facto, entre nós, actualmente, privilegia-se o uso dos adubos inorgânicos (importados e utilizando recursos não renováveis) e dificulta-se a valorização agrícola dos efluentes, não se atendendo assim plenamente ao interesse nacional, em termos de balança comercial e de aumento do teor de matéria orgânica dos solos. Não será por acaso que o maior investimento em curso, realizado por empresários portugueses, está a ter lugar … em Espanha.
Em Portugal, os teores de matéria orgânica dos solos (MOS) agrícolas são elevados apenas na região do Minho e em áreas restritas situadas em zonas frias ou submetidas a aplicações frequentes de estrume (Calouro, 2005). Na generalidade, os nossos solos agrícolas revelam um depauperamento considerável, que no sul do país atinge uma situação preocupante (cf. Gonçalves, 2005), pois a influência do clima mediterrânico é mais marcante e, consequentemente, maior é a taxa de mineralização da MOS; ou seja, as substâncias orgânicas são decompostas mais rapidamente – o que se acentua em regadio.
Nestas condições e considerando a influência benéfica da MOS na fertilidade dos solos – melhorando a sua estrutura, elevando a capacidade de retenção da água e dos nutrientes, disponibilizando estes de forma gradual às plantas, bem como energia e elementos nutritivos aos microrganismos existentes no solo, e reduzindo a fitotoxicidade do alumínio por acção complexante (Quelhas dos Santos, 2015) –, alguns técnicos têm manifestado a preocupação de proceder à correcção orgânica dos solos agrícolas nacionais, tendo Gonçalves (2001) estimado que são «verdadeiramente astronómicas» as necessidades de matéria orgânica (116 Mt) incorporada através de correctivos orgânicos, para se atingirem níveis de MOS adequados.
Nas últimas décadas, a atenção dos cientistas, técnicos e legisladores passou a considerar atentamente o binómio fertilização: ambiente, principalmente devido ao facto de ter passado a ocorrer a concentração de subprodutos de origem animal (estrumes e chorumes) e de resíduos orgânicos (sólidos urbanos, lamas de tratamento de esgotos, lamas celulósicas, etc.), em sintonia com o crescente desenvolvimento da sociedade do bem-estar, designadamente nos domínios alimentar e sanitário. Em consequência, tornou-se necessário acautelar o destino dos referidos produtos orgânicos, de modo a minimizar os seus possíveis efeitos poluentes.
Esta problemática emergiu com grande acuidade em 1945, quando nos EUA se associou a “doença azul dos bebés” (metahemoglobinémia) ao uso de água rica em nitratos na reconstituição de leite administrado, via biberões, a bebés. Se bem que haja fundamentadas dúvidas sobre os verdadeiros riscos para a saúde humana da ingestão do ião nitrato (Soares, 2003; Ward, 2007; Butler et al., 2008; Powlson et al., 2008; Katan, 2009; McNally et al., 2016), em diversos países foi publicada legislação para limitar o teor máximo de ião nitrato na água potável e, posteriormente, também em alguns produtos hortícolas – aliás, principal fonte de ingestão de nitratos pelo Homem. Estes limites, porém, também têm sido postos em causa, tendo (Hord et al., 2009) sugerido mesmo que nitratos e nitritos sejam considerados nutrientes.
O azoto na forma nítrica (N – NO3 –) encontra-se na solução do solo, sendo por isso rapidamente absorvido pelas raízes da grande maioria das plantas em solos com características normais, mas, por outro lado, o nitratião (NO3 –) não é retido pelo complexo coloidal dos solos (Quelhas dos Santos, 2015), constituído sobretudo por argila e húmus.
Por conseguinte, importa reduzir as perdas de nitratos do solo, por um lado para não afectar a fertilidade dos solos e, por outro lado, para não contaminar as águas, quer subterrâneas (por lixiviação) quer superficiais (por escoamento superficial), a fim de respeitar os limites legais vigentes.
Neste sentido foi elaborado o Código de Boas Práticas Agrícolas para a Protecção da Água Contra a Poluição com Nitratos de Origem Agrícola (MADRP, 1997), recentemente objecto de revisão (cf. Despacho nº 1230/2018), onde se estabelecem orientações que visam racionalizar a prática das fertilizações – considerando adubos minerais e correctivos orgânicos – e das técnicas culturais que interferem na dinâmica do azoto.
Conforme sublinha Varennes (2003), nos países mais ricos e com uma agricultura mais desenvolvida, como os EUA, não mais de metade da produção depende de adubos minerais, sendo muito utilizados os correctivos orgânicos, designadamente dejectos dos animais e resíduos orgânicos, convindo neste último caso ter em atenção possíveis contaminações com cádmio e chumbo.
Sendo amplamente reconhecido o papel da MOS na capacidade produtiva dos solos, importa também salientar a importância da MOS na preservação e valorização do ambiente.
Após a incorporação de um produto orgânico no solo (folhas, raízes, dejectos animais, resíduos orgânicos, etc.) aquele sofre uma primeira transformação (mineralização) que liberta nutrientes vegetais (azoto, fósforo, potássio, enxofre, micronutrientes) que podem ser absorvidos pela planta. Por conseguinte, a referida incorporação permite economizar adubos minerais e tira partido da economia circular, na medida em que estes adubos recorrem a fontes não renováveis de nutrientes (fósforo, potássio, etc.), que também estão contidos nos produtos orgânicos supramencionados.
Naquela primeira transformação também ocorre, embora mais lentamente e desde que estejam presentes substâncias de origem vegetal, a formação de húmus ou matéria orgânica estável, que assume especial interesse, em termos agronómicos e ambientais, na medida em que apresenta propriedades coloidais, o que lhe confere elevada capacidade de hidratação e de troca catiónica (Quelhas dos Santos, 2015), contribuindo assim para o aumento de retenção da água (economia de água de rega e menor erosão hídrica – principal causa de degradação dos solos agrícolas em Portugal, segundo Calouro, 2005) e também dos nutrientes aplicados sob forma de fertilizantes ou seus derivados.
Atracção coloidal do complexo argilo-húmico (The University of British Colombia, 2013)
O teor de MOS, incluindo a biomassa microbiana, vai oscilando, conforme o balanço entre as entradas de matéria orgânica (folhas, raízes, correctivos orgânicos, etc.) e as suas perdas por mineralização. Diversos factores afectam a dinâmica da MOS e, portando, o carbono armazenado no solo – com sublinhado para a intensidade dos trabalhos de mobilização da terra.
De salientar que os solos agrícolas representam um importante sumidouro de carbono, estimando-se que, em Portugal, o valor médio de carbono armazenado nos solos agrícolas seja de 47 t/ha (Calouro, 2005).
Hinsinger (2014) sublinha que a MOS constitui o principal reservatório de carbono dos ecossistemas terrestres, consequentemente reduz os gases com efeito de estufa na atmosfera e assim contribui para mitigar as alterações climáticas.
A estre propósito, Zdruli et al. (2004), num estudo publicado sob os auspícios da Comissão Europeia (Organic Matter in the Soils of Southern Europe), sugerem, a título de conclusão final, que a conservação e aumento da matéria orgânica dos solos pode mitigar as alterações climáticas previstas para o Sul da Europa no sentido de um clima mais quente e seco. Em linha, também, com o recém anunciado Roteiro para a Neutralidade Carbónica – RNC2050.
Infelizmente o mencionado parecer não é inteiramente partilhado por alguns entre nós, que denotam alguma incompreensão face à importância da matéria orgânica do solo – tanto para a agricultura, como para o ambiente – e a necessidade da manutenção, ou mesmo elevação do seu teor, com recurso à aplicação judiciosa de correctivos orgânicos; simultaneamente, tal incompreensão põe, evidentemente, também em causa a viabilidade das actividades, de índole económica ou sanitária, geradoras dos referidos correctivos. Por último, cabe notar que os fertilizantes orgânicos ocupam um lugar insubstituível na agricultura em modo de produção biológica, dado que nesta não está autorizada a aplicação de adubos minerais.
Manuel Chaveiro Soares
Engenheiro Agrónomo, Ph.D.