Documentos entregues para provar a actividade da L’atitudes dizem quase exclusivamente respeito a acções realizadas por outra associação.
No início de Outubro, quem passava no Largo de São João, em Castelo Banco, reparava necessariamente num edifício de dois pisos com as letras Adraces afixadas na fachada. O reclamo, de grandes dimensões, identificava as instalações do pólo local da Associação para o Desenvolvimento da Raia Centro-Sul, cuja sede estava, e continua a estar, em Vila Velha de Ródão. Na fachada do prédio nada mais havia, a não ser uma caixa de correio.
Duas semanas depois, o anúncio da Adraces havia sido removido e, por cima da caixa de correio, tinham sido colocadas duas discretas placas de acrílico: uma tinha o logótipo da associacão L’Atitudes e a palavra “sede” na parte inferior; a outra identificava a presença de um Centro de Informação Europeia.
Por coincidência, ou não, as mudanças ocorridas na fachada do edifício antecederam a visita de uma equipa da Inspecção-Geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território (IGAMAOT). A deslocação dos inspectores a Castelo Branco, comunicada à L’atitudes seis dias antes, como estabelecem as regras deste tipo de acções de controlo, destinava-se precisamente a verificar a conformidadade do destino dado aos 200 mil euros que a associação recebeu do Proder com os regulamentos em vigor.
Um dos principais tópicos do controlo consistia na confirmação do funcionamento, no local, da sede da L’atitudes e do chamado Centro de Apoio ao Desenvolvimento Socioeconómico e Cultural da Beira Interior Sul – serviço cuja criação pela associação, juntamente com a recuperação do edifício, foi a principal justificação da atribuição do subsídio.
Por outro lado, cabia à equipa da IGAMAOT verificar se os objectivos específicos que a associação se propunha atingir com a candidatura tinham sido cumpridos. Entre eles destacava-se a publicação de uma newsletter mensal, a promoção de um workshop temático por mês, a realização de seis acções de formação por ano e de outros tantos “eventos promocionais de sensibilização e cidadania”.
Tudo bem, concluiu a IGAMAOT
Terminado o trabalho, os inspectores concluíram no seu relatório, em fins de Dezembro, que estava tudo bem, referindo nomeadamente que “a operação foi executada de acordo com o aprovado e contratado” e que “o beneficiário mantém os compromissos assumidos”.
De acordo com a documentação recolhida pela equipa e consultada pelo PÚBLICO na IGAMAOT, ao abrigo da Lei de Acesso aos Documentos Administrativos (LADA), tudo parecia efectivamente correcto. Aquilo de que os inspectores não se aperceberam, até por causa da natureza deste género de acções de controlo e do tipo de verificações que lhe está associado, foi que os serviços existentes no edifício têm a ver apenas com o pólo local da Adraces e que a quase totalidade dos elementos que lhes foram disponibilizados se refere a acções desenvolvidas por essa entidade e não pela L’atitudes, a beneficiária do subsídio.
É o caso das newsletters entregues à IGAMAOT para provar que a L’atitudes estava a cumprir os objectivos assumidos no pedido de apoio. O mesmo sucede com um outro conjunto de documentos apresentados como resultado do trabalho da associação, mas que foram produzidos e difundidos pelo Centro de Informação Europeia – entidade que era gerida pela Adraces, com um financiamento da Comissão Europeia no valor de 30 mil euros por ano, e que foi extinta no dia 31 de Dezembro por decisão desta instituição.
As bases de dados de beneficiários cuja elaboração competia à L’atitudes e que foram fornecidas aos inspectores também não passam de listagens das pessoas e organizações às quais a Adraces envia as suas publicações.
Para tentar esclarecer a real actividade da L’atitudes, o PÚBLICO pediu à sua direcção que elencasse os principais projectos desenvolvidos e lhe facultasse o acesso aos seus relatórios de actividades. A resposta veio por escrito e diz que a associação considera “não serem atendíveis razões” para disponibilizar essa informação. O mesmo foi respondido, quanto ao pedido de identificação dos membros dos seus órgãos sociais.
Para justificar esta recusa, a associação alegou que não está abrangida pela LADA, uma vez que o que foi financiado por fundos públicos foi o “investimento” nas obras, e não as “actividades” da associação. No seu entender, a obrigação de revelar aqueles elementos só existiria se as suas “actividades” fossem maioritariamente financiadas por dinheiros públicos, o que, segundo afirma, não é o caso.
Fundador está na prisão
Apesar de se recusar a identificar os seus membros e respectivos cargos, a direcção identificou todos os sócios da L’atitudes. São eles, alem da associação Adraces, os seguintes autarcas e ex-autarcas eleitos pelo PS: Álvaro Rocha (ex-presidente da Câmara de Idanha-a-Nova), Armindo Jacinto (ex-vereador e actual presidente da mesma autarquia), Arnaldo Brás e João Carvalhinho (ex-vereadores da Câmara de Castelo Branco), Domingos Torrão (ex-presidente da Câmara de Penamacor), Joaquim Soares (ex-vereador de Idanha-a-Nova), Joaquim Morão (ex-presidente das câmaras de Castelo Branco e Idanha-a-Nova), Luís Correia (ex-vereador e actual presidente da Câmara de Castelo Branco), Luís Pereira (ex-vereador e actual presidente da Câmara de Vila Velha e Ródão) e Maria do Carmo Sequeira (ex-presidente da mesma autarquia).
Na lista dos sócios não consta, no entanto, o nome de António Realinho. Segundo João Carvalhinho, o fundador e primeiro vice-presidente da associação, “solicitou, há meses, a sua desvinculação” da condição de sócio. Este economista e empresário, que até ao Verão passado era vice-presidente e director-executivo da Adraces, actualmente presidida por Joaquim Morão, está desde Agosto a cumprir uma pena de quatro anos e meio de prisão efectiva a que foi condenado por burla e falsificação em negócios de uma da suas empresas, sem qualquer ligação à Adraces.
Em 2015 e 2016, conforme o PÚBLICO revelou em Março do ano passado, duas das suas empresas foram utilizadas pela Câmara de Lisboa para simular uma consulta ao mercado e viabilizar a contratação de Joaquim Morão como consultor do vereador Manuel Salgado.
Quanto aos actuais sócios da L’atitudes, dois deles – Domingos Torrão, agora desligado do PS, e um outro que pediu para não ser identificado – disseram ao PÚBLICO que não se recordam de alguma vez ter ouvido falar na L’Atitudes. Sobre as actividades da associação, usaram a mesma expressão: “Não faço a mínima ideia.” O mesmo respondeu Manuel Eusébio, ex-vereador do PSD que participou na reunião de 2013 em que o subsídio camarário foi aprovado, e Carlos Almeida, o actual vereador desse partido que tem reclamado, repetidamente e em vão, a elaboração de um regulamento municipal de atribuição de subsídios.
Desconhecimento absoluto sobre a existência da associação foi o que revelaram igualmente numerosos residentes em Castelo Branco, entre as quais advogados e jornalistas e militantes de vários partidos.
Mas embora a L’atitudes se tenha recusado a facultar os seus relatórios de actividades e contas, o PÚBLICO obteve os de 2015, 2016 e 2017 junto da IGAMAOT. A conclusão é confrangedora: os três documentos são, em grande parte iguais e as actividades que a associação diz ter desenvolvido são quase sempre da exclusiva responsabilidade da Adraces.
Interesse público, diz o autarca
Questionado sobre os apoios atribuídos à L’atitudes pela Câmara de Castelo Branco, o seu presidente afirmou que a cedência à associação de um imóvel, “devoluto e muito degradado (…) permitiu que, através do acesso a fundos comunitários, [ele] pudesse ser recuperado, valorizado e utilizado ao serviço da comunidade, mantendo-se na titularidade do município, tendo assim no caso vertente sido perseguido o interesse público municipal”.
Luís Correia rejeita, por outro lado, a existência de quaisquer impedimentos legais para ele próprio e Joaquim Morão, tal como os vereadores Arnaldo Brás e João Carvalhinho, intervirem na aprovação dos apoios e subsídios à associação de que eram sócios.
Os autarcas em questão não estavam impedidos de intervir, afirma – contrariando o entendimento dos tribunais (ver texto à parte) -, porque “a câmara, ao deliberar como deliberou, fê-lo na prossecução do interesse público do município, contribuindo para a recuperação de um imóvel que era – e é – seu e [porque] o apoio monetário foi concedido a uma associação que, em termos estatutários, também prossegue o interesse geral da comunidade, inexistindo pois interesses contrapostos ou conflituantes capazes de pôr em causa o princípio da imparcialidade no exercício das suas funções de vereadores”.
Relativamente ao facto de o subsídio ter sido concedido para a execução das obras, quando, nos termos do contrato de cedência do edifício, cabia à associação “recuperar o imóvel e financiar a respectiva requalificação”, Luís Correia também não vê aí qualquer problema. “A Associação L’atitudes foi, efectivamente, a entidade que procedeu à recuperação do imóvel e assegurou o financiamento da obra. O subsídio corresponde apenas a uma parte – minoritária – do investimento total”, sustenta o autarca, que tem a correr contra si, no Tribunal Administrativo e Fiscal de Castelo Branco, um processo em que o Ministério Público pede a perda do seu mandato por ter assinado, em representação do município, vários contratos de empreitada com o próprio pai.
O PÚBLICO perguntou também a Joaquim Morão se não considerava ter violado o Estatuto dos Eleitos Locais e a legislação sobre impedimentos ao celebrar um contrato de comodato com uma associação de que era presidente e propor ao executivo municipal a concessão de um subsídio à mesma associação, mas não obteve resposta. A carta enviada para António Realinho a pedir uma entrevista, através do Estabelecimento Prisional de Castelo Branco, também não teve resposta.