Na transição do mês em que se exalta a Liberdade para este ‘Maio, Maduro Maio’ do Trabalhador, as estrofes do poema de Sophia de Mello Breyner Andresen ‘Vemos, ouvimos e lemos / Não podemos ignorar’ interpelam-me para a escrita deste editorial. O eurodeputado do PCP Miguel Viegas visitou em janeiro, em Liège (Bélgica), um dos armazéns usados pela Comissão Europeia para guardar o leite em pó comprado em 2015 e 2016 nas diversas intervenções previstas na Política Agrícola Comum (PAC) para evitar a derrocada dos preços após o fim das quotas leiteiras em abril de 2015. Ao todo, nos vários silos localizados em alguns países europeus, há cerca de 380 mil toneladas de produto armazenado, o qual, ao preço de intervenção de 169,8 euros/100 quilos – acima dos valores médios de mercado do leite em pó para alimentação humana (162,9 euros/100 quilos) -”, não tem suscitado o interesse da indústria. Ora, o prazo de validade de três anos está a esgotar-se para a maioria do leite em ‘stock’. E a Comissão Europeia não mostra ter, para já, qualquer resposta para o problema. Ou seja, se nada for feito, está-se na iminência de ter de destruir centenas de milhares de toneladas de leite. Perante isto, a pergunta que qualquer cidadão de princípios e livre de pensamento tem o dever de colocar é: – Irá a Comissão Europeia permitir, mesmo por inação, tamanha enormidade? Para mais quando há 795 milhões de pessoas que se deitam diariamente com o estômago vazio, como referia há tempos a diretora executiva da UNICEF Portugal, Madalena Marçal Grilo? E quando o ‘Relatório Global sobre Crises Alimentares’ da FAO nos diz que, em 2017, cerca de 124 milhões de pessoas em 51 países foram afetadas pela insegurança alimentar – mais 11 milhões que em 2016 – devido a novos conflitos ou a conflitos que se intensificaram, designadamente em Miamar, no nordeste da Nigéria, Congo, Sudão do Sul e Iémen ou derivado do impacto das secas na produção agrícola e pecuária em países como a Somália, Sudeste da Etiópia e Leste do Quênia, e nos países da África Ocidental, incluindo Senegal, Chade, Níger, Mali, Mauritânia e Burkina Faso? Miguel Viegas lançou o repto para que o leite armazenado possa ser doado ao Programa Alimentar Mundial e ao Alto Comissariado da ONU para os Refugiados. Mas, meses depois, ainda não há respostas. Nem decisões. Mais do que política, esta é, acima de tudo, uma questão moral. Vemos, ouvimos e lemos. Não podemos ignorar.