Incentivar o financiamento privado em iniciativas que promovem a proteção e restauro dos ecossistemas e biodiversidade, recompensando quem se dedica a estas atividades que a todos beneficiam, é o objetivo do “Roteiro para os créditos da natureza”. A iniciativa é da Comissão Europeia e encontra-se em consulta pública até final de setembro.
O financiamento dirigido a iniciativas de conservação e restauro da natureza tem sido insuficiente para dar resposta aos desafios do ambiente e do clima, que vão da proteção da biodiversidade e das zonas húmidas ao restauro de florestas e rios. Inverter esta realidade, motivando o investimento privado em atividades benéficas para os ecossistemas e capazes de remunerar quem os gere de forma sustentável, é a intenção da Comissão Europeia com a criação do “Roteiro para os créditos da natureza”.
O Roteiro, que pode consultar em versão portuguesa, traça o caminho a percorrer até que os créditos da natureza possam efetivamente ser implementados e transacionados, num modelo semelhante ao que já vigora para os créditos de carbono, mas capaz de evitar, ou pelo menos minimizar, as falhas que têm afetado a credibilidade destes instrumentos. Por exemplo:
– A dificuldade de monitorização e verificação de impactes, garantindo que os benefícios são reais e verificáveis;
– A dupla reclamação, emissão e contabilização de créditos, que acontecem quando um mesmo crédito é utilizado por interlocutores diferentes, quando um único benefício é indexado a mais do que um crédito, ou sempre que um crédito é usado em diferentes registos e sistemas de cálculo;
– A falta de adicionalidade, garantindo que o benefício não ocorreria mesmo sem a iniciativa de proteção ou gestão indexada aos créditos que a financiam;
– A falta de permanência, assegurando que o benefício criado é duradouro e não é abandonado ou revertido após gerar os créditos.
Créditos da natureza: como vão funcionar?
A proposta da Comissão Europeia é a criação de créditos da natureza baseados em certificados, num modelo de funcionamento com duas fases:
Certificação independente da iniciativa que se realiza em benefício da natureza, reconhecendo a validade das ações propostas (ou em curso) para a obtenção de benefícios definidos;
Atribuição dos créditos correspondentes aos benefícios que vão ser (ou estão a ser) gerados, criando unidades transacionáveis.
Na primeira fase, a certificação verifica se as ações em benefício da natureza são concebidas e executadas de acordo com um conjunto de critérios de qualidade (a definir) e se são coerentes com os benefícios propostos, reconhecendo a integridade ambiental com base na qualidade da intervenção. Trata-se de um “reconhecimento formal, verificado de forma independente, de que a intervenção cumpre as normas acordadas (…)”, refere o Roteiro para os créditos da natureza.
Na segunda fase, as melhorias ou benefícios que o projeto vai gerar vão ter atribuído um valor, equivalente a um conjunto de créditos da natureza, que traduz o seu impacte positivo. Serão, assim, gerados créditos passíveis de registar, agrupar e transacionar.
Deste modo, cada crédito da natureza funciona como uma “unidade que representa um resultado benéfico para a natureza”, decorrente de uma ação previamente verificada e certificada por uma entidade independente, e quantificada com base numa métrica ou indicador antes estabelecido e reconhecido.
Ainda não se encontram definidos os critérios, indicadores e métricas a aplicar, mas o documento da Comissão Europeia deixa duas indicações:
A necessidade de estabelecer princípios que assegurem a integridade e credibilidade dos créditos da natureza. Entre as prioridades assume a definição de normas ambiciosas e cientificamente rigorosas, a monitorização independente e uma governação fiável;
A sua integração, sempre que possível, no enquadramento normativo de outros instrumentos similares já existentes na União Europeia. Pretende-se, assim, potenciar sinergias em termos de encargos administrativos e reduzir a necessidade de legislação adicional.
Recorde-se que já estão a decorrer em vários outros países da Europa iniciativas dirigidas à captação de financiamento privado para recompensar iniciativas dirigidas à proteção e restauro de ecossistemas e biodiversidade, com um regime de certificação similar ao que está a ser proposto neste “Roteiro”. Não têm, contudo, este carácter institucional nem a transversalidade de gerar créditos aceites além-fronteiras.
Um exemplo em Portugal é a verificação dos serviços dos ecossistemas FSC® – Forest Stewardship Council. Esta entidade criou um procedimento que permite aos gestores florestais demonstrarem os aspetos positivos da sua gestão, com dados credíveis que as empresas interessadas podem usar para comprovar publicamente o seu compromisso com a sustentabilidade, tornando-se patrocinadoras do projeto.
Dois anos de auscultação, análise e pilotos
Passar do modelo teórico de funcionamento proposto no Roteiro até à implementação de um mercado de créditos da natureza será um processo moroso. A Comissão Europeia estima pelo menos mais dois anos de trabalho (2025-2027) antes de avançar.
Nesta fase inicial, após a divulgação feita em julho de 2025, o “Roteiro para os créditos da natureza” encontra-se em período de auscultação pública até 30 de setembro. O objetivo é recolher os contributos de empresas, organizações e sociedade civil. Em sequência, estão já previstos os seguintes passos:
– 2025: A Comissão Europeia (CE) vai criar um grupo de peritos da União Europeia (UE), que partilhará conhecimentos, identificará boas práticas e dará contributos para diferentes metodologias, sistemas de certificação, abordagens de monitorização e modelos de governação. Será lançado um convite para que os interessados possam manifestar a sua intenção de participar neste grupo.
– 2025-2026: A CE compromete-se a participar em fóruns internacionais, a trabalhar com parceiros internacionais e a agregar conhecimento proveniente de diversos projetos de investigação e projetos piloto, para assegurar que a elaboração das políticas da UE tem por base normas mundiais emergentes e contribui para moldar o desenvolvimento dos mercados de créditos da natureza a nível internacional.
– 2025-2026: A CE realiza a avaliação da oferta e procura por créditos da natureza, ao nível da União Europeia, considerando tendências, obstáculos, fatores impulsionadores e capacidade de participação por parte de pequenos proprietários.
Esta avaliação permitirá ter uma projeção mais concreta sobre o valor de financiamento que estes créditos podem captar, ou seja, sobre o montante que poderá beneficiar os produtores e gestores de áreas naturais e florestais que direcionam a sua atividade à proteção e gestão sustentável. Estima-se que a procura global por créditos de biodiversidade possa representar cerca de 180 mil milhões de dólares, dependendo das medidas e políticas futuras nesta área. Se a Europa captar parte desta procura poderá reduzir a falta de financiamento, que foi estimada em 37 mil milhões de euros por ano.
– 2025-2027: Será apoiado com financiamento público da União Europeia um projeto-piloto, como catalisador e precursor destes instrumentos financiados pelo sector privado.
– Meados de 2026: O grupo de peritos partilhará os seus conhecimentos especializados sobre os critérios e metodologias aplicáveis aos mercados de créditos da natureza.
– 2027: O grupo de peritos partilhará conhecimentos especializados sobre a conceção de quadros de governação para estes créditos, tendo em conta as condições necessárias à participação dos pequenos proprietários e das pequenas e médias empresas.
– 2027: Com base em todos os contributos reunidos, a CE definirá os passos seguintes para a definição e implementação dos mercados de créditos da natureza.
Refira-se que em paralelo a este processo, no início de 2026, deverão entrar em vigor as primeiras metodologias para a certificação das atividades de carbonicultura e remoções de carbono que geram benefícios para a biodiversidade. Os trabalhos feitos nesta área e o regulamento da UE criado para o efeito serão também fontes de ensinamento e boas práticas a considerar para a criação do mercado de créditos da natureza.
O artigo foi publicado originalmente em Florestas.pt.